De tanto rastejar São Sturgill subiu ao trono

Encerrem o mundo, Sturgill Simpson acabou de fazer o disco da década.

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O que Sturgill congemina é superior a tudo o que se faz na country

De um grande disco coutry estávamos todos à espera – uma guitarra em strumming a marcar o tempo, uma lap steel guitar a carpir mágoas, letras a inquirir o sentido desta porra todo, como é habitual no mago Sturgill, disso estávamos todos à espera. Mas disto? Disto? Ninguém imaginava isto. São precisos dois minutos e cinquenta e três segundos de Welcome to earth, a maravilhosa faixa que o grande gigastesco tremendo Sturgilll dedica ao seu primeiro filho para as orelhas uparem em atitude de olé-desta-não-estava-à-espera: de súbito uma faixa séria ao piano torna-se numa festa soul com metais a bradar e aquela potência de que só os heróis são capazes. Há coros, guitarras em repique, órgãos – Adele que ponha os ouvidos nisto, é assim que se faz.

A enorme confusão que São Sturgill nos propõe continua na passagem de Breakers roar – cordas planando pianas ladeadas pela lap steel – para Keep it between the lines, que reinventa a country-soul para o século XXI. Os americanos têm uma palavra para isto: gritty. E quando pensávamos que o homem não podia enlouquecer mais que isto surge, bem a meio do álbum, uma versão de In bloom dos Nirvana, com pianinho e lap steel. O que distingue Sturgill de todos os outros é antes de mais aquela voz imponente, de quem viveu mas não se quer gabar disso, que se impõe com autoridade mas sem esforço. Há nela a tristeza de quem sabe que não adianta revoltar-se contra tudo mas que não consegue evitar fazer as coisas à sua maneira, o que inevitavelmente lhe vai trazer problemas. Mas o que aqui Sturgill congemina é superior a tudo o que se faz na country – não se trata apenas de cruzar a country com a soul, como na magnífica Brace for impact; é que cada som (o arame farpado das guitarras, o alarme de fábrica dos metais), cada ritmo (os baixos a porem sensualidade no que é roliço), cada detalhe (os coros que sublinham cada emoção, pequenas figuras melódicas que se repetem, o pecado nas teclas) é tão medido, tão apropriado, que se diria que algo desceu sobre Simpson para o guiar rumo a uma obra maior – e não deixa de ser irónico que o álbum tenha sido gravado ao vivo e praticamente ao primeiro take. Como é que se chega a isto? Com vida e com estrada. Isto é gente que toca noite após noite, que vence no palco porque falha fora dele. De tanto rastejar Sturgill subiu ao trono. E após oito faixas admiráveis chega Call to arms, a canção em que Sturgill deixa a sua herança ao seu puto: uma raiva imensa contra a podridão. E para tal, nada melhor que uma diabólica pianada, solos de guitarra a estrebuchar, metais enlouquecidos, a modos que como uma manada de bois que (como nós não podemos fazer) se fartasse de levar com espetos nas costas e levasse tudo a eito, a coisa mais raivosa e mais sadia que Deus botou ao mundo em muitos, muitos anos. Puto Simpson, lembra-te disto: sem o teu pai isto não tinha metade da graça.

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