De Sophia Loren a Maximiliano Pereira: cultura popular e os legados do império

Em cidades como Maputo é difícil de encontrar os resíduos de uma cultura popular definida pelo tempo do império.

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Sophia Loren numa das cenas do filme Escândalo em Sorrento

Em 1921, em Lourenço Marques, capital da colónia portuguesa de Moçambique, num dos mais célebres espaços culturais da cidade, o Varietá, o programa de cinema norte-americano, o mais longo, era seguido pelo francês, pelo italiano e, por fim, pelo português. Nessa altura, os espaços que na actual Maputo mostravam cinema promoviam um embrionário star-system internacional, estimulado pelos grandes estúdios norte-americanos, a Warner Brothers, a MGM, ou a RKO.

O cinema, suportado por uma tecnologia de difusão única, conquistou rapidamente um ainda restrito público local e que iria também assistir aos espectáculos dados por companhias de teatro, de revista, de opereta, de zarzuela, por mágicos, artistas de circo e de cabaret. Alguns artistas vinham propositadamente actuar na cidade, mas a maior parte, quase todos estrangeiros, passava no decurso de tournées por toda a África austral. Na imprensa, as páginas dedicadas à “vida artística” assinalavam a animação cultural da cidade, mas também se referiam aos heróis do cinema clássico americano, bem como aos mais populares filmes franceses e italianos. Chaplin, Buster Keaton, Sarah Bernard, Totó, Cantiflas, Errol Flyn ou Sophia Loren tornaram-se progressivamente personagens familiares num dos pontos mais longínquos da África Oriental.

Nas festas, onde uma elite portuguesa se juntava a uma elite internacional ligada aos negócios com a vizinha África do Sul, escutava-se Glenn Miller e Louis Armstrong, dançavam-se conhecidos estilos internacionais, como o jive e o foxtrot, ao som de conjuntos de jazz, em teatros, salões de chá, hotéis, associações e casas privadas. Em 1932, o Grémio dos Radiófilos de Moçambique iniciou as suas emissões. Transmitia para o território moçambicano mas também para a África do Sul, em inglês e africânder. Apostou numa programação cosmopolita, atenta aos grandes êxitos internacionais, com destaque para os que vinham dos circuitos norte-americanos e chegavam aos vários territórios da África Austral.

Mas as redes de uma cultura popular produzida e consumida nas cidades coloniais revelavam outras morfologias, que serão menos evidentes porque menos presentes em fontes de arquivo e sobretudo na imprensa da época. Os trabalhadores africanos que transitavam sazonalmente entre o sul de Moçambique e as minas do Transval, muitos deles “alugados” pelo Estado, transmitiram novos hábitos e consumos. Estes percursos culturais escapavam aos circuitos da chamada “cidade de cimento”, onde viviam maioritariamente os colonos. No regresso do “John”, estes trabalhadores traziam instrumentos musicais, performances e estilos novos, alguns ouvidos na rádio ou num disco tocado num gramofone, que depois se cruzavam com outras tradições, elas próprias já variações urbanas de estilos antigos, realidades demasiado fluidas e ricas para serem fixadas por uma qualquer noção de cultura.

Os subúrbios de cidades como Lourenço Marques, subsistindo em precariedade constante, eram simultaneamente espaços de uma troca cultural cosmopolita que ultrapassava em muito as fronteiras do território colonial. Nestas periferias, a existência de cinemas para indígenas, onde passavam os mesmos filmes americanos, era apenas um entre muitos indicadores de que a cultura popular urbana, partilhada em larga escala por meios tecnológicos cada vez mais eficazes, encontrava-se também sujeita às lógicas de uma desigualdade social e racial prevalecente. A força de uma cultura popular global, tanto aquela proporcionada pelas grandes indústrias culturais, como a que circulava em circuitos mais restritos, permaneceu até ao fim do período imperial, de forma mais saliente nas grandes cidades coloniais.

A expressão cultura popular é bastante imprecisa e não valerá a pena tentar delimitá-la partir de um elenco de géneros culturais, dado que a sua definição depende mais dos contextos de produção e consumo, no âmbito dos quais a industrialização da cultura e a tecnologia são componentes essenciais, do que de uma abstracção qualquer. Noutro sentido, sabe-se que a sua separação de outras designações, como “cultura erudita” ou “cultura tradicional”, é também  bastante artificial.

Ainda assim, o estudo de um conjunto de objectos que podemos incluir neste universo da cultura popular oferece múltiplos observatórios de análise do processo colonial português, mas também permite questionar quais as linhas de continuidade e de ruptura depois do fim do império. Estes questionamentos têm ainda a vantagem de poderem ser pensados convocando para a narrativa histórica actores sociais marginalizados e dimensões do quotidiano negligenciadas pela investigação.

Talvez uma das questões mais relevantes que o estudo da cultura popular pode colocar ao estudo das formas imperiais é até que ponto é possível uma potência colonial como Portugal controlar práticas e consumos culturais no quadro das fronteiras do império e dos seus territórios? E, neste contexto, qual o papel ideológico desempenhado pela cultura popular?

Durante o Estado Novo a censura afectou a edição musical e editorial, a produção e a exibição de filmes, impondo limites à circulação cultural. O Estado produziu cinema, música, livros de propaganda e fiscalizou os canais de produção privados, vigiou os jornais e as associações, controlou a escola oficial e procurou impor uma língua comum. Se é evidente que o poder do império condicionou o desenvolvimento de um campo de práticas e consumos culturais, restará perceber, ainda, num universo de estudos sobretudo concentrado na análise da produção cultural, e muito menos na do consumo, qual a eficácia destas políticas? Como chegaram às populações? De que forma as mudanças nas políticas coloniais, nomeadamente a nova situação imposta pela guerra colonial, alteraram as condições deste espaço de troca? 

Outras pistas de interpretação podem ser propostas a partir da análise da cultura que terá permanecido depois do fim do império nas antigas colónias portuguesas. É certo que o império deixou uma língua que os novos estados africanos, mais do que o sistema colonial português, se esforçaram por generalizar, ajudados pelo crescimento do Estado burocrático, nomeadamente pela escola, e depois pela acção decisiva da televisão; e que esta língua é a língua da literatura nacional, forma de cultura mais erudita do que popular, em países em que os livros são produtos de luxo.

Se em cidades como Maputo é simples reconhecer a projecção cada vez mais tecnológica de uma cultura popular global, misturada com fortes dinâmicas regionais africanas e nacionais, é mais difícil de encontrar os resíduos de uma cultura popular definida pelo tempo do império. Talvez o futebol seja, neste quadro, a grande excepção. Hoje, é muito provável que um “moçambicano comum” saiba melhor quem é Maximiliano Pereira, o defesa direito uruguaio do Benfica, do que quem foram o navegador Vasco da Gama e Mouzinho de Albuquerque, o grande símbolo do poder colonial português no território, quem é Aníbal Cavaco Silva, bem como quem são os maiores vultos da cultura portuguesa cantados pela diplomacia cultural.

Uma tal constatação obriga a olhar para a cultura popular como um universo dotado de uma autonomia. No fundo, caracterizada por uma lógica própria, que se distingue da lógica de actuação do poder político, extravasando o âmbito das políticas culturais oficiais e da constituição de uma memória oficial. É que o “tempo do império” foi também o período em que a cultura popular se tornou num princípio fundamental de relação entre os indivíduos nos espaços urbanos, e isso não pode ser reduzido às narrativas da história nacional.

ICS-UL

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS

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