De novo, a velha ópera no São Carlos: emoção à flor da pele

O Werther de Massenet, encenada por Graham Vick, é agora recuperada no São Carlos. Se procurar uma boa ópera romântica, esta é uma boa ocasião para a ouvir.

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Werther

Passadeira para toilette; desenrolar de rebuçado; ressonar ocasional; abanar frenético de leque; olhar atento de conhecedor; lacrimejar de entusiasta; "bravo" histérico de claque. As velhas hostes de novo reunidas, para assistirem, em música e verso, à conduta desequilibrada e suicida de um jovem egocêntrico e inútil, embebido em autocomiseração. Tanta vaidade junta para celebrar tamanha queda? Celebra-se, pelo contrário, a ressurreição: por uma vez (mas esperam-se réplicas), a ópera volta a São Carlos, e isso vale bem uma procissão de velas — por muito que elas reapareçam fanadas, em andares trôpegos, prenunciando apagões.

Mas o espectáculo, modernizado num "se à Werther se amasse.net", não desilude. O Werther de Massenet (1887) é uma obra-prima. A larga paleta emocional, intensificada pelo conflito freudiano entre o princípio do prazer e o da realidade (ou entre os impulsos individuais e a rigidez das expectativas sociais), é musicalmente trabalhada com finura, intensidade, e um ritmo dramático exacto.

A produção de 2004, encenada por Graham Vick, agora recuperada, transpõe com sucesso a acção do século XVIII para meados do século XX, com o último acto apresentado — achado admirável — como rememoração imaginária, meio século depois. A cenografia é de enganosa simplicidade, como se de um quadro de Hopper se tratasse. A orquestra apresenta, sublinha e acompanha as vivências em palco com pinceladas certeiras, bem doseadas pela direcção segura de Cristóbal Soler. O elenco vocal é equilibrado, com prestação acima da média.

O papel do protagonista coube ao tenor brasileiro Fernando Portari, que, na postura cénica, carregou na caracterização de uma psique torturada com constância desnecessária e contraproducente. A emissão vocal surgiu no seu melhor em pianíssimo: por mais de uma vez, no ataque em "forte" de uma nota aguda, pareceu incapaz de acertar nela à primeira, e de não a destimbrar em demasia. Embora, no geral, tenha desempenhado o seu papel com desenvoltura, as cantoras levaram-lhe a palma: a meio-soprano italiana Veronica Simeoni, no papel de Charlotte, e a nossa soprano Cristiana Oliveira, enquanto Sophie.

É impossível não as cumular de elogios; os papéis — um mais maternal, outro mais adolescente — assentaram-lhes como luvas. A voz aveludada da primeira teve o seu contraponto na ágil ligeireza da segunda; ambas subordinaram a técnica impecável às exigências expressivas das situações. O barítono Luís Rodrigues foi eficaz e sugestivo no papel de Albert, apesar de neste registo lírico alguma rugosidade tímbrica ficar demasiado exposta.

Mais compacta é a voz de Pierre-Yves Pruvot (Bailio), que desempenhou a contento a sua parte. O também barítono João Merino (Johann) e o tenor Mário João Alves (Schmidt) foram inteiramente convincentes nos seus papéis; uma palavra final para a excelente participação de membros do Coro Juvenil de Lisboa.

Se procurar uma boa ópera romântica, esta é uma boa ocasião para a ouvir na forma de um drame lyrique tardo-oitocentista parisiense, presume-se que ao gosto de Eça de Queirós.

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