Das tribos aos Estados fortes

Um contributo para a história da construção da democracia ao longo dos séculos XIX e XX

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Francis Fukuyama acredita que transferir instituições públicas fortes para países em vias de desenvolvimento pode criar Estados estáveis e menos problemáticos Daniel Rocha

“A ciência política não é uma disciplina que se possa definir com clareza”, afirmaram dois dos seus mais conhecidos professores da Universidade de Columbia — Ira Katznelson e Helen V. Milner, organizadores de Political Science: The State of the Discipline (Norton, 2002). E, no entanto, é essa mesma falta de clareza que tem permitido aos cientistas políticos alargar o domínio das suas investigações e os padrões das suas comparações, desenvolvendo um interesse omnívoro pelas outras ciências sociais e retomando projectos interdisciplinares propostos, noutros contextos, por historiadores, sociólogos, antropólogos e economistas. Ou seja, a aparente falta de clareza traduz-se numa enorme abertura e numa vibrante busca de explicações capazes de responder aos problemas postos pelos processos considerados políticos. 

Francis Fukuyama, do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade de Stanford, representa bem esse modo ambicioso de fazer Ciência Política, num diálogo com uma Sociologia Histórica de largo espectro, em que os problemas são colocados na longa duração e a uma escala mundial. Que essa ambição científica vá a par de posicionamentos e conselhos políticos extremamente conservadores pode nada ter de surpreendente, se tivermos em conta a obra de Fukuyama agora recenseada, cujo primeiro volume, saído em 2011, foi logo traduzido por Ricardo Noronha, com o título As Origens da Ordem Política: dos tempos pré-humanos até à Revolução Francesa(D. Quixote, 2012). No seu conjunto, a obra, que o autor começou a preparar após o 11 de Setembro de 2001, tem uma dupla filiação. Por um lado, Fukuyama pretende rever as teses de Samuel P. Huntington, no seu clássico Political Order in Changing Societies (Yale UP, 1968), em termos de política comparada, declínio político, modernização autoritária, e autonomia do desenvolvimento político em relação a outras dimensões da modernização. É que, para Huntington, se a democracia nem sempre conduziu à estabilidade política, o objectivo era demonstrar que a criação de uma ordem política devia ser prioritária em relação à democratização. Fukuyama revê, também, o optimismo com que ele próprio abordou os processos de difusão dos modelos de democracia liberal, em O Fim da História e o Último Homem, de 1992 (tradução pela Gradiva) — o seu livro mais conhecido, escrito logo após a queda do Muro de Berlim (1989).

Por outro lado, Fukuyama procura uma resposta para os problemas relacionados com a construção de Estados e nações em países com governos instáveis ou em colapso. Enquanto consultor do Banco Mundial e de agências de ajuda internacional, Fukuyama estudou mais directamente os problemas de construção dos Estados na Melanésia, onde preponderam ainda sociedades tribais, com as suas linhagens segmentárias e grupos de pessoas que se reconhecem como descendentes de um antepassado comum. No pequeno livro publicado originalmente, em 2004, Construção de Estados: governação e ordem mundial no século XXI (Gradiva, 2006), procurou responder aos anseios dos Estados Unidos e de toda uma comunidade internacional de doadores, que tinham investido em projectos de construção de nações pelo mundo fora e que foram obrigados a confrontar-se com o fiasco dos seus projectos. Foi o que sucedeu no Afeganistão, no Iraque, na Somália, no Haiti, em Timor-Leste, na Serra Leoa e na Libéria. Um dos argumentos principais da obra em causa é que Estados fracos ou fracassados, constantemente expostos ao colapso e à instabilidade, são a fonte dos mais graves problemas do mundo, “da pobreza à sida, das drogas ao terrorismo”. Logo, uma das principais questões de Fukuyama consiste em saber como transferir instituições públicas fortes para países em vias de desenvolvimento, criando Estados capazes de exercer um forte poder infra-estrutural.

A primeira parte deste livro discute como chegaram a Alemanha, a Grã Bretanha e os Estados Unidos a constituir administrações modernas e relativamente incorruptas, enquanto a Grécia e a Itália, que se democratizaram antes de terem estabelecido uma administração moderna, “desenvolveram sectores públicos clientelistas”. Pode, por isso, argumentar-se que “os países nos quais a democracia precedeu a construção de Estados modernos tiveram muito mais dificuldades para garantirem uma governação de elevada qualidade do que os que herdaram Estados fortes da época absolutista”. 

A segunda parte procura seguir a emergência de Estados não-ocidentais em territórios que foram colonizados e subjugados pelas potências europeias. Neles, os governos europeus minaram a legitimidade das instituições tradicionais e atiraram muitas sociedades para um limbo onde não eram consideradas “tradicionais nem plenamente ocidentalizadas”. Os países que tinham instituições indígenas mais desenvolvidas, antes da colonização europeia acabaram por ser os mais bem sucedidos da actualidade — não era o caso da África subsariana de finais do século XIX. Quando a Grã-Bretanha se apercebeu dos custos da administração colonial, pretendeu desenvolver uma política de “domínio indirecto”, escusando-se a investir na criação de instituições estatais; logo, a “herança colonial foi mais um acto de omissão do que de missão”. 

Na terceira parte deste livro, Fukuyama trata o que denomina de responsabilização democrática, “um travão útil à governação abusiva, corrupta ou tirânica”. Considera, antes de mais, que a Terceira Vaga de democracia (1970-2013) fez subir as democracias no mundo de 35 para 120, um aumento que cativou a atenção de muitos especialistas. Mas o período que elege como objecto de análise é o da Primeira vaga, iniciado em 1815, com o Congresso de Viena. A experiência europeia mostra a lentidão da transição para a democracia. Durante o século XIX, julgava-se que as massas não tinham capacidade para votar, ideia que minou a própria legitimidade da democracia — a ponto de o sufrágio universal em Inglaterra só ter sido posto em prática em 1929. Crucial, para a difusão da democracia, foi a existência de uma classe média. Porém, neste momento, “se uma grande classe média é efectivamente importante para a sobrevivência da democracia, quais são as implicações da perda de empregos da classe média por causa dos avanços da tecnologia e da globalização?”.

A última parte do livro trata da decadência política. Esta última é atribuída, sobretudo, aos processos de rigidez institucional, com os seus pesos e contrapesos, que geram um governo cada vez maior mas que não consegue cumprir funções básicas; aborda igualmente os processos de repatrimonialização do Estado, capturado por grupos de interesse bem organizados, sobretudo nos Estados Unidos, onde foi “repatrimonializado através da influência de grupos de interesse no Congresso”. Ora, esta repatrimonialização ao serviço de grupos de interesse substituiu o clientelismo do século XIX, que dava aos eleitores benefícios em troca de votos. 

São vários os momentos desta obra em que se sente a marca do conservadorismo liberal do autor. Quando naturaliza o apego emocional às instituições, por exemplo, confessa: “O conservadorismo inerente ao comportamento humano tende a dotar as instituições de significado emocional depois de serem implementadas”. O mesmo se diga do apego do autor ao conceito de Estado forte, e da apologia da sua necessidade. Apesar de se poder dizer, conforme sublinha o autor, que uma perspectiva desta natureza vai a contra-corrente das ideias da geração anterior que, desde a década de 1980, desqualificou o mesmo Estado. De qualquer modo, é o Estado forte que está relacionado com o desenvolvimento económico — e não a democracia. 

Claro que Fukuyama, no último capítulo, não deixa de repetir a ideia optimista de que, no princípio do século XXI, “a democracia tornou-se verdadeiramente globalizada”. E, ao recordar o que foi um dos seus principais argumentos em O Fim da História, não deixa também de notar que no passado, em contexto colonial, o modo de transmitir instituições assumiu formas menos suaves: conquista, ocupação e frequentemente escravização ou eliminação das populações indígenas. Só depois as potências coloniais, quando realizaram que não podiam recriar as suas instituições noutros lugares, procuraram criar, em interacção com as instituições indígenas, formas diferentes das da metrópole. 

Porém, Fukuyama não deixa de se comprazer com a ideia de que “os casos de maior sucesso de transferência institucional foram aqueles em que as potências coloniais povoaram com as suas gentes territórios esparsamente ocupados” (América do Norte, Austrália, Argentina, Chile e África do Sul). Enfim, existe nesta última análise a apologia de um certo tipo de colonialismo, em que os métodos coloniais se justificam pelos resultados alcançados. Ou seja, devido à sua capacidade de criação de instituições fortes, capazes de desencadear e sustentar o desenvolvimento económico. 

Leia aqui um excerto do livro

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