Dar tudo ao público com uma dança despida

Vemos em The Dog Days Are Over uma interessante assimilação da herança da dança belga que visita Portugal desde os anos 1990.

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Piet Goethals

Ajustar as calças, apertar os atacadores dos ténis, prender o cabelo, subir as meias até ao joelho, e alinhar para a corrida - eis a forma como oito bailarinos dão início a este espectáculo, em digressão mundial, já conhecido como a maratona coreográfica do saltar.

Efectivamente o próprio Jan Martens resume assim a sua nova peça onde uma dança resulta de saltos sequenciados, durante 70 minutos, com a qual pergunta: até onde estamos dispostos a ir para alcançar o sucesso na sociedade da competição? “The dog days” é uma expressão coloquial para os dias de calor e de conforto que, como ironiza este coreógrafo belga, estão ameaçados. Nos anos 2010 as políticas públicas de financiamento pedem aos artistas de elite resultados quantitativos, a exemplo das indústrias criativas que colhem a adesão de públicos e financiadores privados, cativados pela inovação, utilidade e entretenimento. Martens submete então as suas capacidades à prova desses indicadores.

A linha frontal inicial de corpos que dão pequenos saltos paralelos é demorada e instala uma pulsação que perdurará como motivo. Nesse uníssono minimalista aparecem variações de ritmos - binários, ternários e quaternários - e de direcção – de frente, de costas, de perfil - que consolidam o colectivo sincronizado. Desta acção repetitiva desenvolvem-se desenhos espaciais possíveis: o conjunto descreve rotações a 180 e a 360 graus ou espalha-se e congrega-se em geometrias simples de linhas e círculos, que avançam e recuam, ou que abrem e fecham. É neste transe comum que se definem tipologias do salto evocativas de ambientes mais divertidos e festivos (nos estilos vaudeville e folclórico) mais desportivos e de treino (no estilo da ginástica aeróbica) ou mais estilizados (ao estilo da dança teatral acrobática).

Pontualmente há vozes que dão instruções a todos. Estas são palavras de ordem e interjeições que confirmam tratar-se de uma coreografia muito detalhada e exigente; mas também reforçam a hierarquia subjacente às actividades que promovem o extraordinário ou pedem obediência.

A resposta de Martens à desvalorização da dança contemporânea na política cultural e na sociedade do presente é muito boa. Primeiro, porque o coreógrafo escolheu um universo que é tão familiar à sociedade de consumo – o ‘fitness’ notório nos figurinos e nos corpos - abrindo de imediato a possibilidade de converter essa sociedade em espectadores. Segundo, porque embora pudéssemos resumir tudo a uma sequência de saltos, a construção especializada e complexa da partitura coreográfica e o virtuosismo dos bailarinos são evidentes. E, finalmente, The Dog Days Are Over oferece uma interessante assimilação da herança da dança belga que, desde os anos 1990, visita Portugal regularmente.

Nesta peça coreográfica sentimos o extremismo visceral de Jan Fabre nos corpos explorados até à última gota de suor; reconhecemos o perfeccionismo elegante de Anne Teresa de Keersmaeker na composição estruturada e profunda do movimento; e revisitamos o namoro de Alain Platel com o pungente e o celeste quando, num breve momento, Martens combina a música de Bach com uma luz muito ténue. A sua dança de saltos, despida e sem artifícios, é muito inteligente e muito bonita.

 

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