Danças Ocultas: o concerto das concertinas

No seu primeiro disco ao vivo, o grupo de Águeda juntou vozes convidadas às das suas concertinas: a Filarmonia das Beiras, Carminho, Dead Combo e Rodrigo Leão. Um registo musicalmente soberbo.

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Enchente é uma palavra que anda há anos, pelas piores razões, associada a Águeda. E ainda agora se confirmou, nas recentes cheias. Mas também há boas enchentes, vindas de lá. Que o digam os Danças Ocultas, o quarteto de concertinas de Águeda, que a partir de duas salas cheias (CCB e Casa da Música, em maio de 2015) estão agora a lançar o seu primeiro disco ao vivo, com um registo musicalmente soberbo, Amplitude. O que se respira nos seus concertos está lá, ampliado a outras vozes convidadas, escolhidas para serem um prolongamento natural do seu som: a Orquestra Filarmonia das Beiras, Carminho (a vocalizar um tema de raiz tradicional), os Dead Combo e Rodrigo Leão.

A primeira vez que tocaram juntos foi em 1989, e a experiência do seu crescimento está registada no livro Alento, de Jorge P. Pires, documentado com fotos de Duarte Belo (ed. Assírio & Alvim, 2003). Mas o primeiro disco, Danças Ocultas, gravaram-no em 1995 (a edição foi em 1996) incentivados por Gabriel Gomes (Madredeus, Sétima Legião). Seguiram-se Ar (1998), Travessa da Espera (2002), Pulsar (2004) e Tarab (2009), aos quais se juntou em 2011 uma colectânea que veio a ter o mesmo nome do livro: Alento.

Nestes anos, o grupo refinou a abordagem ao instrumento e, à semelhança de um quarteto de cordas clássico (eles conheceram-se no Conservatório), as várias "vozes" musicais foram distribuídas pelos quatro: Filipe Cal faz as harmonias, Artur Fernandes e Francisco Miguel as melodias e Filipe Ricardo toca concertina baixo, que de protótipo passou a instrumento fabricado por encomenda, com um fole que se abre ao tamanho de dois braços abertos. Foi assim que se lançaram no labor hipnótico de Tarab, em 2009. E no final de 2011 conheceram Dom La Nena, jovem cantora e violoncelista brasileira com quem se apresentaram em palco e gravaram depois, juntos, um CD (Arco, 2014) com quatro temas, dois deles e dois dela (estes com letra e vocalização da cantora).

Uma escolha criteriosa
A participação de outros músicos no seu trabalho, porém, não começou aí. Em Pulsar, por exemplo, já haviam participado Gabriel Gomes, Mário Laginha, Maria João, Tiago Abrantes, Edu Miranda, Gaiteiros de Lisboa, Rui Júnior, José Salgueiro e outros. Mas o que motivou os convites que levaram à gravação de Amplitude teve a ver com vários factores. Filipe Cal: "Há espectáculos em que se nota que os convidados estão ali um bocado ‘colados’ sem grande justificação, mas acho que aqui isso não aconteceu. Eles têm um contributo importante em cada uma das músicas em que participam. Os Dead Combo, com aquele som deles, que introduz elementos novos em Esse Olhar; ou a Carminho, grande cantora, com uma intuição e uma performance espectaculares." Artur Fernandes realça, a par dos convidados (tocar com a orquestra era já uma ideia antiga), a "escolha criteriosa de repertório": "Preocupámo-nos em recuperar uma parte do que regularmente fazemos ao vivo, juntando-lhe alguns temas em função dos convidados (aquela onde o Rodrigo Leão toca, a Dança d’alba, já não a tocávamos ao vivo há imensos anos) e ainda uma coisa que gostámos imenso de fazer e que deu resultado, que foi escolher músicas nossas que a orquestra tocou a solo, caso da Pandora, que entrou no disco, embora nos concertos haja mais, Quatro ilusões e Hinos à noite."

Os temas escolhidos para integrarem o disco (no concerto há outros) vieram em grande parte dos discos Tarab (4) e Travessa da Espera (4), mas também de Ar (1) e Pulsar (2). A estes, junta-se ainda um tema de Rodrigo Leão, Tardes de Bolonha. O tema cantado por Carminho, O diabo tocador, é inspirado numa melodia tradicional, A canção da roda. E a ideia deles, depois de gravarem o tema em Tarab, foi voltar a fazê-lo canção. Escolheram Carminho por acharem a sua voz grave a mais adequada. "Aqui está um detalhe que escapa à maioria das pessoas: o fado tem dois compassos, binário e ternário; ora a música O diabo tocador tem cinco tempos, uma coisa complicadíssima, e impressionou-nos a facilidade tremenda com que ela meteu aquela letra nesta música."

Inéditos para 2017
Todos os arranjos, mesmo os para orquestra, foram escritos por eles. E o disco reflecte de forma muito fiel o entrosamento entre os músicos, a respiração das concertinas aliada aos sons e timbres dos restantes instrumentos. "A ideia foi reproduzir o mais fielmente possível aquilo que lá se passou", diz Artur Fernandes. "Conseguimos ali o recorte de cada instrumento com muito boa definição", acrescenta Filipe Cal. "A qualidade do som ficou muito acima do que costuma ser a média dos discos ao vivo. Para as panorâmicas, o Nuno Rebocho [engenheiro de som] esteve a medir exactamente onde é que cada músico estava, para a reprodução corresponder ao lugar dos músicos no palco."

Os concertos registados em Amplitude (as faixas incluídas vêm em cerca de metade de cada uma das salas, Casa da Música e CCB, respectivamente nos dias 4 e 5 de Maio de 2015) são, pela sua estrutura, irrepetíveis. Mas o grupo, que em 5 de Março vai voltar a Viena de Áustria, tenciona manter este ano a experiência com orquestras. "Atendendo a que na Europa central há orquestras em praticamente todas as grandes e médias cidades, a nossa ideia é tentar fazer isto com orquestras locais de vários países."

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Depois, têm pela frente dois projectos. Um, que lhes foi sugerido, baseado no cancioneiro e com voz; e um novo disco de originais. Artur Fernandes: "O material inédito ainda está em pequenas células. Ficará para 2017. Terminado este trabalho, vamos dedicar-nos a isso. Eventualmente num tema ou outro podemos voltar a trabalhar com orquestra".

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