Da América

O novo disco de Matana Roberts afirma a compositora e saxofonista como uma grande voz, feita de outras vozes e de memórias.

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Matana Roberts conjura a memória da escravatura, de viagens no mar, das lutas pelos direitos civis: em suma, da América

“Conhecer a História deixa-me tão feliz. Recorda-me, todos os dias, que vivo uma vida de privilégio real, verdadeiro, e que não posso ter a felicidade sem a tristeza.” Esta frase, dita pela americana Matana Roberts numa entrevista, é um atalho interessante para quem quiser entrar na obra da compositora, vocalista e saxofonista que desde 2011, com o projecto COIN COIN, tem vindo a acordar espíritos e fantasmas. A origem destes “seres”, ressalve-se, não é secreta, pois provém da História da América (negra), da sua cultura, da sua música. Poder-se-ia dizer que é por eles, com eles, que Matana, com a sua sabedoria exigente e regeneradora, canta e toca.

O novo disco corresponde ao terceiro capítulo de COIN COIN e introduz algumas diferenças em relação aos trabalhos anteriores. A artista surge mais solitária diante das gravações, dos sons, das memórias, enquanto a “tradição de jazz” se escuta, sobretudo, no lirismo do saxofone. Discreto, quando não indefinido (parece soar a outra coisa), é ele que pontua e desenha o caminho dos temas. De resto, COIN COIN Chapter Three: river run thee liberta-se de classificações ou categorias. É um fluxo contínuo, uma colagem, uma sucessão de documentos sonoros. Ouvem-se sinos, o tráfego urbano, vozes de mulheres, o choro de uma criança, melodias infantis, o chilrear de pássaros. Mais do que uma vez, regressam e regressam ao longo das 12 faixas.

Sobre esses “destroços”, Matana fala, canta, discursa, conta, conjurando a memória da escravatura, de viagens no mar, das lutas pelos direitos civis ou do período em que viveu num barco na baía de Sheepshead, em Brooklyn. Sobrepõem-se, então, tempos distintos e, a exprimir emoções contraditórias, uma dissonância violenta, lamentos e coros, pequenas interpretações, vestígios de cantigas. All is written é o grande tema de abertura, talvez um dos mais belos e difíceis que se ouvirão este ano, com todas as imperfeições e forças de Matana a induzirem o ouvinte a um transe que se transformará numa tempestade de ruído com a chegada de The good book says. E o tom mudará no momento seguinte, ao som de Clothed to the land, worn by the sea, quando o dramatismo do tema inaugural se afasta, para ceder lugar a um sentimento acolhedor, estranhamento pacificado. As vozes, os sons de fundo contribuem para essa sensação, apesar das terríveis narrativas que as palavras vão desfiando. E todo o disco flutua ao ritmo de movimentos assim.

Não faltam nomes que se podiam associar a este disco. Patti Smith, Linda Sharrock, Pauline Oliveros, Laurie Anderson, mas COIN COIN Chapter Three: river run thee está sustentado por um sentimento espiritual, dir-se-ia mesmo religioso, que quase sempre foi alheio àquelas senhoras. É um disco carregado de histórias, de comunidades, que nasceu na rua. O disco de um regresso, composto por vinhetas que Matana recolheu em diferentes lugares e experiências nos EUA. Um disco acompanhado (apesar da solidão da sua autora), onde cabem episódios vividos no Louisiana, encontros imprevistos com os Hell Angels, ecos do hino americano e a voz de Malcom X. Da América para América.

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