D. Madalena e seus dois maridos

Nesta encenação de Frei Luís de Sousa tenta-se radiografar o pessimismo dos portugueses.

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Quando Polifemo, o ciclope, pergunta o nome a Ulisses, a resposta é famosa: “Ninguém”. Garrett, que em Frei Luís de Sousa faz entrar em cena um peregrino, tal como Ulisses se faz passar por mendigo para eliminar os pretendentes da esposa, tinha isso presente, podemos apostar.

Aliás, as primeiras palavras da peça são tomadas de empréstimo a Camões, outro ulissista convicto, por assim dizer: “Naquele engano d’alma ledo e cego / Que a fortuna não deixa durar muito…” repete “maquinalmente e devagar o que acaba de ler” D. Madalena, a mulher de presságios e visões, que, apesar de ter conseguido casar em segundas núpcias com o homem, Manuel de Sousa Coutinho, por quem se apaixonara à primeira vista, vive amargurada por ter caído de amores antes de saber que o marido, D. João de Portugal, morria no campo de batalha de Alcácer-Quibir.

D. Madalena enganou-se ou quis enganar-se, tal como o público espera iludir-se com a arte do palco, e os amadores com as coisas amadas. Quando o Romeiro entra em cena, toda a gente sabe, apesar da dúvida, quem ele é. Senão, para quê perguntar? Édipo sabe mas não quer ver, Hamlet sabe mas quer uma prova, D. Madalena sempre soube mas fecha os olhos.

Sousa Coutinho, porém, não é um dos pretendentes que delapidam o património de Penélope, nem a filha, Maria, é Telémaco. Garrett socorreu-se de outros pedaços da tradição literária e dramática, desde a peste e os pecados desconhecidos de Édipo aos retratos e fantasmagorias de Hamlet, que combinou de forma original e perene. Esta genealogia das formas é interessante para compreender o ponto de onde Garrett parte e o ponto onde a peça chegou hoje, dezenas de encenações depois. O escritor e os seus intérpretes, culminando em Rogério de Carvalho, que tenta nesta encenação radiografar o pessimismo dos portugueses, tentaram ao longo dos anos descobrir como as coisas novas já nascem velhas.

Se Frei Luís de Sousa fosse uma comédia novecentista, a peça seria sobre a D. Madalena e seus dois maridos, e uma das cenas-chave, por exemplo, seria o quiproquó em que D. João, escutando D. Madalena, atrás da porta, a chamar o novo esposo, pensa que ela chama por si, João, quando na verdade chama por Manuel. (Às vezes, basta tirar os nomes de família para mudar de género teatral.) Garrett, porém, já tinha feito isso em Um Auto de Gil Vicente e o seu projecto era agora inventar a tragédia portuguesa. Reinventa, pelo menos o fatalismo.

Em termos poéticos, D. João morreu três vezes: uma quando a fiel esposa deixa de ser tão fiel; outra, imediata, quando se julga que cai em Marrocos; e uma terceira quando, regressado a casa vinte anos depois, conclui que é melhor fingir-se de morto. Morto, mas vivo, claro. E não é só ele: todos estão mortos nesta peça, cujos tons fúnebres não deixam margem para dúvidas. Manuel de Sousa Coutinho, que vai assumindo o papel de D. João, primeiro ocupando o coração de D. Madalena, depois o heroísmo, depois a casa, parece morrer aos poucos para renascer como uma figura mista, com propriedades e características de D. João. No final da peça, o escapulário que assume, mudando até de nome, equivale às vestes do romeiro. Um e outro, na verdade, não são ninguém. É a sujeição aos fados.

A própria montagem, na sequência de uma série de encenações — de Robles Monteiro a Ricardo Pais — que fazem a história do teatro português moderno, inventado de resto pelo próprio Garrett, ecoa o lastro desta patrimonialização e, no modo como evoca alguns detalhes históricos dos figurinos e da maquilhagem, em contraste com os painéis do cenário, faz prova de uma certa nostalgia das formas teatrais. Esta nostalgia está já em Garrett que, a despeito do realismo historicista e romântico da peça, procura que este luto alegórico do fim do império tenha símbolos vivos, como se procurasse dar lugar a uma forma nova. Essa forma, encarnada na figura impaciente de Maria, sucumbe de vergonha perante o fatalismo dos demais. Ou será de vergonha alheia? As penas auto-infligidas das personagens mais velhas acabam por determinar a pena da personagem mais nova. Poderemos algum dia escapar a isso?

 

 

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