Cultura sim, mas com que governo?

Não podem os autores e restantes agentes culturais, deixar de exigir ao novo governo, a este ou ao próximo, a adopção de consistentes políticas culturais.

O novo governo está constituído e só resta saber, no incerto contexto político actual, com uma maioria parlamentar que lhe é desfavorável, de quanto tempo irá dispor para mostrar o que é e quais são as suas políticas.

É certo que voltou a existir um Ministério da Cultura, que também é da Igualdade e da Cidadania, mas esse regresso pouco significado terá se por- ventura for curta a vida desta equipa governativa, o que tudo leva a crer que irá acontecer.  Sendo a Assembleia da República o centro legítimo da nossa vida democrática, será ali que ocorrerá a legitimação do governo e da sua política, facto essencial para que Portugal encontre a estabilidade essencial para poder superar a crise que tanto nos afecta.

Na área da Cultura como nas outras, não basta existir um ministério. É preciso que existam políticas e essas políticas não poderão ser as herdadas do governo que agora cessou funções, porque foram insuficientes e erradas, mesmo se tivermos em conta que, no plano legislativo, foi possível  criar e fazer aprovar, mesmo contra a vontade do Presidente da República, a Lei da Cópia Privada, pela qual os autores durante tantos anos se bateram. A lei existe e poderá ser a base material do apoio aos projectos criativos de autores que recorram ao Fundo Cultural criado pela AGECOP (Associação para a gestão da Cópia Privada).

Neste momento tudo se encontra em aberto, porque só com um governo estável e durável poderemos saber quem é quem no diálogo que irá orientar-se para a resolução dos problemas e carências mais graves. Quando me perguntam como vejo a criação de um Ministério da Cultura, confesso ter dificuldade em responder, pois não sei o que lhe irá acontecer nos próximos dias, como consequência daquilo que maioritariamente o parlamento virá a decidir.

Continua a ser difícil saber, neste momento, que governo irá ter a cargo a responsabilidade de governar Portugal nos próximos quatro anos, ou mesmo nos próximos meses. Seja qual for o desfecho deste complexo processo, é certo e indiscutível que ninguém, com os autores e artistas em destaque, poderá esquecer o que foi a experiência vivida nestes quatro anos e que se caracterizou por uma sistemática privação de meios para apoiar a criação e a difusão do trabalho cultural. Foi essa a vontade do anterior governo e do seu primeiro-ministro, que se caracterizou, desde logo, convém não o esquecermos pela supressão do Ministério da Cultura na estrutura governativa e pela atribuição a um secretário de Estado a responsabilidade gerir, na directa dependência do chefe do governo, os assuntos desta área. Foram tempos difíceis, que os constrangimentos orçamentais seriamente agravaram. E nem vale a pena recordar agora o que se passou com as obras do catalão Joan Miró para se perceber que a Cultura foi, manifestamente, o parente pobre do governo, que terá esquecido ou ignorado o seu significativo contributo para a riqueza nacional e para a criação de emprego, tendo esse contributo sido mesmo superior ao de outras indústrias consideradas de importância estratégica.

Por isso, muitos foram os autores que, durante a recente campanha eleitoral apontaram a criação do Ministério da Cultura  como uma prioridade inadiável do governo eleito. O PS comprometeu-se a assumir essa responsabilidade e a assumir o carácter prioritário do investimento na ciência e na investigação e também a necessidade urgente de se repensar o modo de funcionamento da televisão pública. O ministério  quer agora voltar a existir, mas resta saber durante quanto tempo e com que asas para tentar voar. Se for para cair, o melhor será não sair do ponto de partida. As ilusões não fazem bem à Cultura e a quem a cria e difunde.

Existe uma tradição de que a França de André Malraux, gaulista, grande escritor e ensaísta, mas também herói do combate contra o nazismo na Guerra Civil de Espanha e na Segunda Guerra Mundial é o mais estimulante exemplo. Essa tradição, que teve a criação de um Ministério da Cultura em França como referência, não pode ser afastada do moderno processo de formação de um governo que perceba, mesmo sob o constrangimento das restrições financeiras , quais são as áreas prioritárias quando se trata de valorizar o que temos de mais mobilizador, criativo e gerador de riqueza para o Estado e de estímulo psicológico para uma população apreensiva e ansiosa por respostas para as suas muitas incertezas e dúvidas.

Nesta matéria, a esquerda costuma ser mais ousada e construtiva do que a direita que tende, como sempre acontece nessa área ideológica, a desconfiar dos intelectuais, dos artistas e dos autores, por considerar que eles são uma espécie de “exército” das ideias livres e da contestação social e política. Mesmo se assim fosse, neste Portugal que procura caminhos e respostas num tempo de revalorização do debate político, é imperioso que se reconheça aos agentes culturais uma capacidade e um potencial de realização e transformação essencial para a requalificação da nossa vida colectiva.

Por este motivo, não podem os autores e restantes agentes culturais, deixar de exigir ao novo governo, a este ou ao próximo, a adopção de consistentes políticas culturais que o apetrechem com a dinâmica necessária para tornar estratégica uma área tão relevante da nossa vida colectiva. Creio que nisso todos podemos e devemos estar de acordo, porque, como dizia o dramaturgo e cronista brasileiro Nelson Rodrigues, trata-se do “óbvio ululante”.

É urgente que sejam repensadas as formas de se apoiar e preservar o nosso património cultural e de se repensar o circuito de promoção e difusão das nossas obras culturais no estrangeiro onde é grande o número dos que admiram a nossa música, a nossa literatura e outras disciplinas criativas com muitas provas dadas. Dizer isto não é mera retórica política em tempo de decisões urgentes. É, isso sim, a constatação de uma evidência que o debate político intenso não pode adiar ou fazer caducar. O que o próximo governo, este ou outro, de acordo com a indiscutível vontade parlamentar, fizer com a Cultura e em nome dela irá dizer muito sobre a sua natureza e sobre as prioridades que o unem e motivam. Se a Cultura vier a ter, como se deseja e exige, um papel estratégico na acção governativa próxima,  há muitas medidas operativas e de carácter legislativo que deverão orientar os processos de intervenção neste domínio. Importante é que os criadores e outros agentes culturais não se resignem nunca com soluções pobres que condenem a Cultura e os seus agentes a uma insuportável e injusta subalternidade.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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