Cultura: evento ou enraizamento?

Outro país real — e pensem no interior desabitado — só surgirá com uma outra política de enraizamento do que é cultura artística.

Foi uma boa notícia que António Costa nos deu falando de mais apoios para a cultura. E é boa porque o primeiro-ministro foi um pouco mais longe do que é costume — estabeleceu, no que disse, um grau de compromisso como a política real do governo no próximo futuro. Costa falando de património e criação artística, fala necessariamente de uma dualidade integrada, de um sentido básico do que seja uma política cultural, porque estabelece, clarificadamente, dois esteios dessa política: um que se reporta à memória, latu senso, activo ideal de natureza identitária que se vivifica pela prática da história contra o presentismo, referido à “pedra”, aos feitos, às obras e até à língua, sempre por vir, e um outro, o da criação, gesto que é o de agir pela intuição inteligente em conjuntura actual sobre o presente, experimentando encontrar novas formas disciplinares artísticas de o revelar e de o fruir, de o expor, de o criticar, que sejam socializadas sem perda das suas característica complexas, sem simplificações abusivas, como seriam as de fazer um Beckett explicado às “criancinhas” que há nos adultos, ou um actualíssimo Ulisses em três parágrafos, sem vírgulas, de enfiada.

É necessário que se abram perspectivas críticas à vida de todos — vivemos num sufoco perspectivo e prospectivo, hoje, sem vias de libertação enriquecedoras e a cultura crítica é aqui uma fonte potencial, alimento— na medida em que a criação em si implica uma reconsideração e um regresso ao primeiro imaginado gesto criador: o da invenção da vida como um todo. É isso a poesia: uma demiurgia sensível que busca integridade e projecta uma respiração, uma voz, um desvio produtivo, uma desnorma, diria.

Mas esta notícia só faz sentido se de facto corresponder a uma política. Estamos cada vez mais metidos num real cujas contradições são extremas, dramáticas, mas passivamente aceites, olhadas com impotência: de um lado o paradigma do consumo com todas as suas estrelas, de um a cinco, procurando um politicamente correcto da qualidade e da qualificação de objectos inclassificáveis — se são arte —, a dizer-nos que a relação preço-qualidade faz do consumo um ideal de vida baseado em regras rigorosas, basta sermos decómanos e acreditarmos nos peritos atribuidores de estrelas, combatentes dessa qualidade que se arvora em limite de perfeição consumista possível, virtude do mercado, do outro, a vida real a atirar-nos à cara o que tem sido a regressão clara do que parecia ser um ideal estabilizado, um grau civilizacional atingido, a Europa, agora desEuropa: o desemprego, a imigração, a guerra global multipolarizada, o terrorismo, que não se podem dissociar deste tipo de vida que a visão neoliberal levou ao seu extremo afirmativo com a negação de um papel do Estado como garante de uma forma de democracia inclusiva e expansiva: esta só faz sentido a caminho de mais democracia e não de menos democracia.

E essa política poderia ser o redimensionamento, a estruturação e o aprofundamento de uma verdadeira componente cultural da democracia, em nada conjugada, politicamente, com ideias de indústria cultural e outras conceptualizações recentes, em tudo indústrias mas em nada criação — não basta que existam nos objectos produzidos por essas indústrias elementos criativos para que se confundam com arte e com cultura crítica, com pensamento, com pensamento em acção, com visão. Claro que, quando o tal do conceito, a palavra que veste graficamente a ideia, anda definitivamente feito enfeite em ambiente culinário, poli-salivado verbal com nuances de madeira e citrinos, especiarias e o que for, também o pensamento não vai além do que se digere e das cambiantes da filosofia de prato — a outra era de alcova. É sinal dos tempos, o mercado a impor o alcance da visão no seio das intensas nuvens publicitárias que fazem o seu constante esplendor em fundo real de dilúvio constante. O que a publicidade quer alcançar, cada publicitário, é a força brutal do tsunami transformada em fama, em marca, unipolar e arrasadora, um terrorismo logótipo e penetrar nas mentes como visão/sensação/prazer infinito/voo/experiência única e íntima.

O problema? Vivemos em contraposição com a tragédia global, em festival perpétuo. Não será festa, essa tem uma energia que não se compra, raiz antropológica ainda. O festival será comemoração mediatizada, indústria de entreter, espectáculo permanentemente espectacularizado e tomou conta do território. O verão é um pouco isso, uma geografia dos festivais, ajuntamentos, movimento gregário e isqueiros ao alto. E há, de facto, uma confusão estabelecida entre esse plano do festivaleiro, do “evento” e a necessária modificação estruturada do nosso dia-a-dia: a que não se faça no “espectáculo”, na multiplicidade dos programas televisivos que inventam estrelas por imitação em série, mas que se faça num diálogo real com estruturas de criação activas no território, com gente formada e revelada nas escolas de arte, profissionais — nas artes musicais é notável o que se atingiu, falando de instrumentistas — e capazes tanto de dialogar com a memória como de experimentar o futuro, exercitando-o. Essa via é a de um teatro enraizado na democracia e estimulado pela política cultural, de um cinema que não se pense a conta gotas de investimento filme a filme, de artes plásticas que não sejam a excepção ou a montra da colecção do tipo rico a ganhar espaço público para o seu negócio privado, que não se faça de modismos e descaracterização identitária no desprezo pela riqueza da própria língua e numa desqualificação do seu vocabulário, de cosmopolitismo desertificante e estúpido, global esmagando o local — de glocal fala Marc Augé.

Outro país real — e pensem no interior desabitado — só surgirá com uma outra política de enraizamento do que é cultura artística: para conhecer Pessoa não bastam as selfies ao Chiado, nem os resumos escolares servem o Camões, nem Shakespeare vive de glosas visuais, virtuais, muito engraçadas, vive do extraordinário gesto da tradução, essa esperanto em trânsito constante que nos torna planetários e que faz da universalidade de certas obras uma realidade.

Que dizer do modo como Carlos de Oliveira é ignorado? Para conhecer o Herberto Helder não chega o aproveitamento publicitário e cínico da sua própria morte, à espera do próximo surto de fama circunstancial — não proponho escolarização de nada, proponho estímulo estruturante, casas do exercício, prática oficinal.

Que isto vai contra o princípio da popularidade estatística no comando? Vai. E contra a cultura do que suga, mediaticamente — há um sujeito, cego e mediático, imperial, o gosto impõe-se também através de formas de terror vulgar — aquilo que é e que é obra criativa? Sim.

Como diz o texto que vou dizer em palco: ponham a vossa vida de acordo com as vossas ideias.

Encenador

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