Crónica de um esporro

A obra do Prémio Camões é agora reeditada.

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Tem apenas três livros, todos muito breves, cuja escrita se concentrou na década de 1970 Flavio Florido/Folhapress

A obra toda do escritor brasileiro Raduan Nassar (Pindorama, São Paulo, 1935) lê-se, com vagar e volúpia, numa tarde. E sobra tempo. A obra completa do mais recente vencedor do Prémio Camões soma três livros: um romance (Lavoura Arcaica), uma novela (Um Copo de Cólera) e uma colecção de ‘contos’ (Menina a Caminho). São todos – romance, novela e restantes textos – muito breves. Até mesmo sob este aspecto, que se poderá considerar apenas acessório, a obra de Nassar é singular, num mundo sobrelotado de escritores que se afundam no (nosso) esquecimento sob o peso de destemperadas bibliografias (activas, passivas e assim-assim). Pelo contrário, e depois de lida e relida com incansável e renovado prazer, a obra de Nassar perdura na (nossa) memória. Perdura e expande-se. Tal obra foi pela primeira vez publicada em Portugal no final da década de 1990, pela editora Relógio D’Água (o romance e a novela) e pela Cotovia (os textos mais curtos). Está sendo agora republicada sob a chancela Companhia das Letras.

Embora o autor tenha começado a escrever nos anos de 1960 e apesar de datar de 1994 o seu último livro publicado, Menina a Caminho, a escrita literária de Nassar e a respectiva publicação original no Brasil concentraram-se em meia dúzia de anos durante a década de 1970. Após ter publicado, em 1975, o romance Lavoura Arcaica e, três anos depois, a novela Um Copo de Cólera (cuja escrita, porém, precedera a do romance), o escritor desistiu de escrever, trocando a emergente glória literária pela criação de galinhas numa fazenda do interior paulistano. Tão prosaica deserção, que nem convoca a aura trágica da apostasia rimbaldiana nem se assemelha ao silêncio agressivo de Salinger, por exemplo, constitui outra singularidade. A renúncia, aliás tranquila e feliz (tanto quanto se sabe), é hasteada em O Ventre Seco, texto/conto publicado em 1984 no jornal Folha de São Paulo e depois recolhido em Menina a Caminho, e cujo narrador afirma: “Cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio”.

Um Copo de Cólera é a crónica de um esporro. Não anunciado. Após uma noite deleitosa, um pretexto insignificante espoleta uma discussão intensamente teatral, violenta e purgatória entre um casal. Só saberemos os nomes das personagens (muito) secundárias desse acto central que ocupa dois terços da novela e se intitula, precisamente, O Esporro. Protagonista e antagonista (intervindo ambos na narração), resguardam-se num anonimato que os alegoriza enquanto pólos ou máscaras da razão e da emoção, do direito e do avesso, da positividade e da negatividade. Que bela discussão, senhoras e senhores, que bela desordem, cheia de sexo, política, filosofia e fúria. E uma prosa, larga e sábia, de chorar por mais (algo assim como se Butor, por exemplo, tivesse sido convulsionado por Lautréamont). Raduan Nassar é como aquele bisavô – “tão vetusto, tão novíssimo” – recordado pelo narrador do conto Mãozinhas de Seda (incluído em Menina a Caminho), que fazia recomendações horacianas ao bisneto – “O negócio é fazer média. […] Nada de porraloquice.” – e que “sabia das coisas, não improvisava, punha milénios em cada palavra”. Se é breve a obra, é longa a arte: Nassar põe também milénios em cada palavra.

A cólera entornada nesta novela e a situação encenada (tematizando as oposições maturidade/juventude, masculino/feminino, revolução/reacção, etc.) desenvolvem, em mais do que uma ocasião e em mais do que um sentido, O Ventre Seco, neste ecoando textualmente: “não gosto de gente, para abreviar minhas preferências”.

Um Copo de Cólera não tem o lirismo fogoso e obsessivo de Lavoura Arcaica, mas compartilha com este livro um idêntico erotismo turbulento e genesíaco e uma idêntica negatividade de fundo, sendo várias as semelhanças existenciais entre o jovem e trágico protagonista do romance, o “filho tresmalhado”, e o maduro e colérico protagonista da novela, o “biscateiro graduado”. Assim, por exemplo, se no presente livro se diz que “a culpa melhora o homem”, em Lavoura Arcaica o pai do protagonista dirá que “o sofrimento melhora o homem”. Contra estes e outros alçapões da consciência jorra o colérico esporro do protagonista desta novela: “é só por um princípio de higiene que não limpo a bunda no teu humanismo”. Um álgido desassossego, que se resolve, ou que estoicamente se suspende, virando as costas ao mundo e aos engodos da razão aperaltada: “não há nada que esteja mais em moda hoje em dia do que ser fascista em nome da razão”. Só a derrota, porém, aguarda o protagonista de tão titânica (e tirânica?) tentativa de descompor o “pecado original” que cada palavra traz “no seu bojo” e que “nem a banheira do Pacífico teria água bastante pra lavar”. Muito significativamente, é a mulher quem se apodera da narração no último capítulo da novela. E é tomada por uma “virulenta vertigem de ternura”.

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