Crivelli de Pais do Amaral teve autorização de exportação para os Estados Unidos a partir de Londres

Meio ano depois do rebentar da polémica, autoridades portuguesas mantêm o caso mergulhado no silêncio. É possível que a obra “jamais” volte a Portugal por via legal.

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"Virgem com o Menino e Santos", de Crivelli DR

A pintura Virgem com o Menino e Santos, que o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral foi no ano passado autorizado a vender para França e que a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) está há seis meses a tentar recuperar, poderá a qualquer momento sair do espaço Schengen e da esfera de influência da União Europeia.

De Paris, para onde foi expedida por Pais do Amaral e onde chegou a estar exposta na montra do antiquário Jean-François Heim, a “Virgem portuguesa” seguiu “de forma absolutamente legal” para Londres, tendo entretanto obtido do Arts Council britânico uma licença de exportação permanente para os Estado Unidos.

Assim, segundo uma fonte que acompanhou parte das diligências oficiais pelo retorno da obra a Portugal, o regresso não acontecerá “jamais” por imposição legal, quando muito apenas “por via de trabalho diplomático”. Isto, ainda que há já cinco meses o actual responsável governamental pela pasta da Cultura, Jorge Barreto Xavier, tenha anunciado na Assembleia da República (AR) a revogação da autorização de venda no estrangeiro concedida a Pais do Amaral pelo escritor e editor Francisco José Viegas, primeiro secretário de Estado da Cultura do XIX Governo Constitucional de Pedro Passos Coelho.  

Em Setembro de 2012, Viegas não tornou pública a sua decisão, nomeadamente, como exigido por lei, através da publicação em Diário da República da desclassificação da obra até então protegida. Juntando-se a esta falha processual, o anúncio de Barreto Xavier indiciaria uma vontade de regresso da peça ao país por via legal. No entanto, no momento em que foi expedido para Paris por Pais do Amaral o “Crivelli português” estava autorizado a circular no mercado internacional. Para todos os efeitos, a sua saída foi “absolutamente legal” – ainda que porventura ilegítima na sua origem –, disse ao PÚBLICO a mesma fonte, acrescentando que esse facto dificulta todas as démarches do Estado português no sentido da recuperação de uma obra que eventualmente devia ter sido obrigada a permanecer no país, mas que efectivamente não o foi.

A permanência em território nacional era o que impunham as protecções legais de que a obra usufruía desde 1970 e que Viegas revogou, ignorando, nomeadamente, extensos e detalhados pareceres técnicos e jurídicos que chegaram a pedir para esta pintura “única” a classificação de Tesouro Nacional, a mais alta protecção do Estado para património móvel. O momento em que o então responsável máximo pela Cultura em Portugal formaliza essa sua decisão foi assim o momento em que a obra “saiu completamente fora da capacidade de controlo do país”, disse ao PÚBLICO a mesma fonte.

Em silêncio
Foi apenas em Junho deste ano, através de uma investigação do PÚBLICO, que a decisão de Viegas chegou ao conhecimento público. Por entre a quente polémica que daí decorreu, foi no mês seguinte que Barreto Xavier fez na AR o anúncio de revogação de autorização de saída da obra. Desde então tanto a SEC como a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) têm recusado comentar o caso. Um silêncio que tem ecoado por noutras entidades potencialmente envolvidas em diligências públicas – por exemplo, a Polícia Judiciária (PJ).

Por várias vezes contactado no fim de Outubro pelo PÚBLICO, o gabinete de imprensa do principal órgão de investigação criminal português, normalmente célere nas suas respostas, tardou três semanas a fazer saber que “por força do dever de reserva a PJ não pode prestar quaisquer esclarecimentos sobre a matéria em causa”. Ficaram assim por responder todas as questões colocadas, nomeadamente se em algum momento a PJ foi chamada a agir no caso e se em algum momento de alguma diligência apurou o actual paradeiro da obra.

Também o Arts Council britânico se escusou a quaisquer esclarecimentos. Por email fez saber que “os detalhes relacionados com as candidaturas a licenças estão sujeitos a ser tratados como confidenciais”. “O Arts Council não pode [por isso] confirmar ou negar [a licença de exportação que o PÚBLICO sabe ter sido emitida]”, lê-se no email.

Já os herdeiros do açoriano Caetano Andrade de Albuquerque Bettencourt, aos quais Pais do Amaral comprou o Crivelli, continuam, com apoio jurídico, a construir o seu caso contra o Estado português.

“Estamos a analisar as informações que têm vindo a lume”, disse ontem ao PÚBLICO José Carmona, um dos dez herdeiros que ao longo de anos tentaram sem sucesso obter a mesma autorização de venda no estrangeiro concedida a Pais do Amaral e que se sentem agora lesados.

Segundo documentação oficial que no final de Julho circulou na Assembleia da República, Pais do Amaral poderá ter feito com a venda desta importante pintura italiana mais de cinco milhões de dólares (3,6 milhões de euros, ao câmbio actual) – esse foi o valor avançado como oferta ao empresário pelo antiquário Jean-François Heim, quando a 4 de Abril de 2011 se propôs pela primeira vez a adquirir-lhe a pintura, mas, como intermediário numa venda a terceiros, Heim teria ainda de receber a sua margem de lucro.

São valores que dificilmente se obteriam no estreito mercado português, a que estavam circunscritos os dez proprietários da obra antes de Pais do Amaral.

Também no final de Julho Viegas foi ao Parlamento, acabando por reconhecer que na base da sua decisão esteve “uma questão ideológica óbvia”. Referia-se ao entendimento de muitos membros do Governo, tanto do PSD como do CDS, de que a protecção do património não deve sobrepor-se ao direito à propriedade privada, ainda que este não seja um direito absoluto. A oposição acusou-o na altura de “um acto à margem da lei”.
 
 
 
 

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