Criatividade frustrada

As canções parecem aparecer e desaparecer da nossa vista sem as agarrarmos.

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As canções parecem aparecer e desaparecer da nossa vista sem as agarrarmos DR

Quando surgiu Jewellery, em 2009, abrimos a boca de espanto. Deixámo-nos contagiar pela liberdade criativa, quer na construção das canções, quer na instrumentação utilizada para o conseguir (guitarras danificadas, teclados marados, found-sounds resgatados à rua, aspiradores), e testemunhámos a chegada de uma música que era deliciosamente pop e declaradamente vanguardista. Uma obra totalmente do seu tempo e, ao mesmo tempo, manifestação de uma originalidade que sobreviveria assim mesmo, única, qualquer que fosse a época em que se manifestasse. Com Jewellery, descobrimos Mica Levi, a Micachu do baptismo da banda.

Com formação clássica, adepta do punk e da electrónica perturbada que emanou do grime, Mica Levi tornou-se a partir daí nome de destaque no cenário musical britânico: residências artísticas no Southbank Centre, em Londres, a par da edição regular de mixtapes; actuações com os Shapes ao lado da London Sinfonietta (de que resultou o álbum ao vivo Chopped & Screwed), um segundo álbum, Never, e, em nome próprio, a celebrada assinatura da banda-sonora de Debaixo da Pele, o filme de Jonathan Glazer com Scarlett Johansson como (alienígena) protagonista.

Good Sad Happy Bad é o regresso de Micachu And The Shapes. Em Inglaterra, consideraram-no inesperado. Esperavam que Mica Levi prosseguisse caminho solitário em vez de se reunir novamente ao baterista Marc Pell e à teclista Raisa Khan. Foi realmente um álbum inesperado – para a banda que o gravou. E nota-se. A lenda urbana que vêm propagando em entrevistas diz que o gravaram depois de, sentados num pub a falar do que iriam fazer à vida, decidiram meter-se num estúdio nesse mesmo dia para uma sessão improvisada. Marc Pell gravou-a sem avisar e foi desse registo que nasceu Good Sad Happy Bad. Corte e cola dos melhores momentos das sessões, vozes gravadas sobre os excertos recuperados e eis nascido o terceiro álbum de Micachu & The Shapes.

Nele, encontramos a banda em versão esquissos. As canções são, como habitualmente, curtas (apenas três ultrapassam os três minutos), mas, ao contrário do que acontecia em Jewellery ou, mais espaçadamente, em Never, soam a ideias registadas para desenvolver mais tarde. Os elementos estão lá, mas organizados de forma descarnada, forma encontrada para dar corpo a estas pequenas vinhetas do quotidiano: do amor que se deseja ao refúgio na brisa marítima, do spoken-word sobre a inadequação entre a vida saudável e o prazer dos copos e do tabaco à angústia sem origem definida que nos atravessa a existência.

O resultado, nesta música que mantém viva a inventividade com raízes no pós-punk (pela ideia de fugir aos cânones estabelecidos) e que surge aqui em modo inevitavelmente lo-fi, cativa tanto quanto frustra. As canções, batida minimal, voz balbuciada, guitarra de som comprimido e teclados como sonoplastia preenchendo o cenário, parecem aparecer e desaparecer da nossa vista sem as agarrarmos, rápidas demais para exercerem em nós o efeito que prenunciam a início.

Não será estranho, portanto, que as pérolas do álbum sejam as canções mais longas, ou melhor, aquelas, como a magnífica Oh baby, mistério nublado que ondula como balada encantatória, ou a Suffering da despedida (“It’s only suffering/that keeps my conscience clean”, que são verdadeiramente obra completa e não rascunho.

Tudo pesado, Good Sad Happy Bad é uma curiosidade. Assinada por uma banda absurdamente criativa, mas não mais que isso. Daí a frustração.

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