Correspondência em tempos revolucionários

As 34 cartas trocadas por António Ribeiro dos Santos e Frei Manuel do Cenáculo reconstituem um período particular da História política e cultural portuguesa

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À margem do mercado editorial, o melhor do trabalho historiográfico das últimas décadas tem consistido em edições críticas, livros de erudição e publicação de documentos. A este respeito, qualquer inventário corre o risco de esquecer obras essenciais. De qualquer modo, merecem especial menção: a Descrição em torno de Lamego, fixada com esmero por Amândio Morais de Barros (Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro); a Ulisseia de Gabriel Pereira de Castro ricamente anotada por Segurado e Campos (Gulbenkian); a monumental edição em quatro volumes dos Comentarios de la embaxada al rey Xa Abbas de Pérsia (1614-1624), coordenada por Rui Loureiro, Ana Cristina Costa Gomes e Vasco Resende (UNL-FCSH-CHAM); as Obras Completas do Padre António Vieira, a cargo de José Eduardo Franco e Pedro Calafate (Círculo dos Leitores); a edição feita por Ernesto Rodrigues da Fastigínia de Tomé Pinheiro da Veiga (UL, Faculdade de Letras, Centro de Culturas Lusófonas); e as exemplares traduções do latim de Aires Augusto do Nascimento e Arnaldo do Espírito Santo.

Desvalorizadas quase sempre pelos circuitos do mercado editorial, bem como pela bibliometria em que os académicos se enfronharam, tais obras ficam à mercê de instituições públicas e privadas cujo trabalho nem sempre é reconhecido. Em Lisboa, por exemplo, a Biblioteca Nacional — contra uma tutela governamental de uma inépcia escandalosa que não se responsabiliza pela deterioração do património do livro antigo, até porque nem sabe o que isso é — tem procurado manter viva a chama da nossa tradição bibliográfica, erudita e filológica, bem orientada para a reconstituição do sentido dos documentos. De facto, no Campo Grande têm-se sucedido edições e exposições, com o valioso contributo de investigadores e bibliotecários dedicados, tais como Ana Isabel Líbano Monteiro, Gina Rafael, Lígia Martins, Luís Farinha Franco e Manuela Rêgo.

O livro em apreço constitui mais uma pedra nesse edifício de construção lenta, situado longe das luzes da ribalta. A sua autora é Manuela Domingos, cuja vida de serviço, como investigadora da Biblioteca Nacional e grande especialista da história do livro, da leitura e das bibliotecas, necessita de ser recordada não só para servir de exemplo às gerações mais novas, mas também como estímulo para que prossiga na publicação das suas muitas investigações.

As trocas epistolares entre Frei Manuel do Cenáculo (1724-1816) e António Ribeiro dos Santos (1745-1818), situadas no curto período de tempo que vai das vésperas da Revolução Francesa (1789) às invasões napoleónicas, constituem o grosso deste livro. Completam o elenco, num total de 34 cartas — entre as quais uma, escrita em latim, é acompanhada de uma bela tradução de Arnaldo Espírito Santo —, duas ou três missivas de Cenáculo, nomeadamente para o príncipe D. João e para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o poderoso ministro que veio a organizar a ida da corte para o Brasil.

E o que revela tal correspondência? Antes de mais, as cartas mostram que, mau grado a diferença de geração entre Ribeiro dos Santos e Cenáculo, existe um enorme consenso na partilha de uma cultura erudita e eclesiástica, que reteve alguns traços do Iluminismo. Cenáculo — mais velho e com experiência acumulada por ter sido um dos homens chave nas reformas pombalinas da educação — viu na expulsão dos jesuítas a possibilidade de retomar, à boa maneira franciscana, uma espiritualidade original. A sua erudição, o seu espírito de antiquário, o seu gosto pelos livros e pelo coleccionismo são tudo elementos de um Iluminismo católico, tão em voga nos meios eclesiásticos italianos, espanhóis e austríacos. Por sua vez, Ribeiro dos Santos só entra na vida pública quando, depois do consulado pombalino, assumiu a organização da biblioteca da Universidade de Coimbra. Desde então, a sua participação nos trabalhos da Academia das Ciências, sobretudo na área das letras e da literatura, fez-se notar. Ora Cenáculo, homem do pombalismo, tinha pela Academia um evidente desprezo, talvez por ela ter contado com o patrocínio do Duque de Lafões, a cargo de quem se encontrava uma espécie de enquadramento mecenático dos letrados e intelectuais que as reformas pombalinas tinham criado. Em 1796, Ribeiro dos Santos foi chamado a dirigir a denominada Biblioteca Pública da Corte. Tal ascensão, de Coimbra para a capital, coincidiu com a subida de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, afilhado de Pombal, nos círculos governamentais de finais do século XVIII.

No essencial, as cartas revelam que Cenáculo pretendia a intervenção de Ribeiro dos Santos para ver satisfeitos os seus serviços, sobretudo os que tinha prestado no âmbito das instituições pombalinas de organização da educação, do livro e da cultura. O modo de obtenção dessa recompensa acabou por surgir sob a forma da mitra do arcebispado de Évora. Ribeiro dos Santos não deixou de ser, depois, compensado com um dos muitos benefícios de que Cenáculo passou a dispor e pôde redistribuir. Mas será preciso não esquecer que uma das preocupações do mesmo Cenáculo visava a protecção dos seus sobrinhos, seus herdeiros naturais.

Rememoração de Pombal, lógicas de mecenato, continuação do recurso ao latim, mitras eclesiásticas e solidariedades familiares serão, então, os principais temas de uma correspondência em tempos revolucionários. Tal como se existisse uma recusa em encarar as rupturas e os novos ventos provenientes de França. E na recusa da figura perturbante do burguês à conquista do mundo, apenas algumas excepções se contam. É o que sucede na carta escrita por Cenáculo, em latim, quando este deu a entender que estava em curso a criação de uma outra esfera pública, ao elogiar o trabalho desenvolvido pelos “hábeis livreiros Gendron e Reycend, depois de Lerzo e Morganti, pessoas de confiança e inteligência na procura do esplendor, fama e utilidade da República”. 

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