Contrição
Quem um dia desgostou de Doolittle ainda vai a tempo de se redimir: é um grande disco e a sua reedição traz algumas surpresas
Em 1987, muitos terão sido os melómanos que não resistiram a imaginar os rostos dos Pixies. Rareavam as fotografias de imprensa e a voz de Black Francis parecia a do punk que, em Nova Iorque, dá as boas-vindas a Snake Plissken. Qual não foi o espanto quando no retrato estavam, afinal, três tipos banais e uma rapariga de sorriso simpático. Este foi o primeiro “choque” provocado pela banda de Boston. O outro foi sentido entre os adeptos da 4AD: não percebiam a decisão de Ivo Watts-Russel. Porquê contratar uma banda de guitarras, feita de músicos que gostavam tanto de Hüsker Dü como de Peter, Paul and Mary? “Esse não era o caminho”, diziam entredentes enquanto penduravam as gabardines.
Mas se para os anglófilos vingava a incredulidade, para outros chegara a melhor banda do mundo. Os Pixies não eram música de vanguarda, “da frente” ou alternativa. Eram college-rock, mas não só não se confundiam com os REM e com os Hüsker Dü como tinham encontrado um equilíbrio irrepreensível entre a agressão do punk-hardcore e o culto da canção que a country, o blues, o rock and roll e a surf music lhes tinham deixado. Os Gun Club, os Meat Puppets e até os Sonic Youth tinham aflorado esse equilíbrio, mas os Pixies chegavam no momento certo. Ao som de Doolittle, os estádios e a consagração no mainstream ficavam à mercê da ambição de Black Francis (cada vez mais o líder do grupo).
Faltou pouco, muito pouco. O que falhou? Talvez a ausência de factor X, mas essa discussão fica para outro dia. Adiante. Doolittle é um disco em que a banda aspira ao reconhecimento do público, que deseja o sucesso e com arrogância. Alguns fãs de Surfer Rosa (1987) aborreceram-se com semelhante atitude e hoje serão tentados a novo amuo. Não vale a pena. Apesar dos violinos de Monkey gone to heaven, dos clichés de Here comes your man, apesar da boa higiene da produção de Gil Norton, façam a devida contrição: Doolittle é um disco estupendo. Tão estupendo que apaga os equívocos da última reunião.
Comece-se pela descarga punk que agita Crackity Jones. Poucas bandas conseguiram cantar a angústia e o medo com tanta velocidade. Está tudo no acorde que persegue, sôfrego, o destempero de Black Francis. Nem os Bad Brains faram melhor. Em No. 13 baby, os Pixies fazem o que querem. Ora antecipam a chegada dos White Stripes, ora aperfeiçoam a dinâmica agressão/suavidade. Quando a progressão de cordas parece anular tudo, os riffs finais elevam a canção. Há poucos epílogos assim na história do rock. There goes my gun podia figurar num filme de Jim Jarmusch se o cineasta americano fosse (ainda) mais pop e Silver é uma balada surpreendente, deixando entreaberto um caminho que os Pixies nunca tomariam: o do encontro com a folk. Depois há a fabulosa Gouge away, onde as guitarras e a bateria dançam na companhia de Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
Em Aberdeen, os Nirvana estavam ouvir. E esta recensão terminaria aqui se a reedição não incluísse as demos de Doolittle. São muito mais do que uma mera soma de curiosidades. Sem a produção de Gil Norton, o som dos Pixies está mais áspero e Black Francis embriaga-se na sua própria voz. Violentíssimo em No. 13 baby, como era e foi Jeffrey Lee Pierce, oferece uma versão de Debaser muito superior à original, pois canta com o abandono de um adolescente. Os arrepios chegam com as versões de Gouge away. Na primeira, as palavras segredadas despertam e rejeitam o entusiasmo das guitarras; na segunda, a voz de Francis já não pode ser a do punkde Carpenter. É a de Lou Reed, é a de Tom Verlaine, é a de Iggy Pop.