Contrabando de histórias da periferia

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Rui Catalão Patrícia Almeida

Este espectáculo de teatro tem a forma de uma conferência, parte de um ciclo intitulado A Grande Dívida, do qual foram já apresentadas A Sagração da Primavera Escondida e A Exaustão da Confiança, no Festival Verão Azul, em Lagos; A Grande Ilusão (de Sofia Dinger), A Rosa e o Sino, e Conquista de Ceuta, neste mesmo Temps d’Images.

Além de encerrar o ciclo, A Dívida Familiar é a conferência que contém mais explicações sobre a razão de ser do conjunto. Talvez não seja propriamente um espectáculo, talvez não seja propriamente teatro, mas tem algo de espectacular e de teatral, em vários aspectos, o trabalho de Rui Catalão, tanto no ciclo considerado como um todo, como em cada uma das conferências.

O projecto apresenta-se como “uma paródia aos estudos performativos”, “em que a vida contemporânea é analisada”, “teatro sem aparato cénico: apenas o prazer de contar histórias”. Essa é a solução encontrada para o problema de contar o mundo à escala pessoal de Rui Catalão. A revelação de episódios pessoais, repletos de factos e descrições, sobre o autor e a sua família, e sobre as aventuras de Catalão na sociedade portuguesa, jornadas ao estrangeiro incluídas, não é um mero reflexo de narcisismo, como se poderia recear, mas antes um acto de partilha de histórias com as quais muitos se identificariam.

As conferências, a que se poderiam ainda juntar Av. dos Bons Amigos e Canções i Comentários, outros trabalhos deste ano, dão conta de um modo de viver da classe média portuguesa, habitando a periferia de Lisboa, nos últimos 40 anos, do ponto de vista de quem tem hoje 40 anos (como o autor). A relevância deste trabalho é tão maior quanto esse modo de vida parece não ter encontrado ainda o seu lugar na ficção portuguesa. A vista panorâmica da periferia deixa o centro, por momentos, num ângulo morto. É uma periferia que por vezes se parece estender de Norte a Sul, e outras vezes ser uma metáfora para todo o tipo de exclusão. Esse panorama é espectacular.

Catalão está em busca de um repertório narrativo próprio, começando do zero. O ponto de vista do narrador destas histórias é vincado pelas várias referências territoriais. Origem e destino geográficos das pessoas de quem se fala são sempre mencionados, e as respectivas deslocações descritas com vagar, por referência última ao lugar onde se encontra o actor no momento da performance.

As marcas da origem social são reveladas por essa topografia, mas não só. Está nos meios de produção deste teatro feito quase sem nada. Como diz o autor durante a palestra, sem autocomiseração, os seus maiores mecenas são os pais — e não é o Estado, mas as famílias dos artistas, quem apoia a criação artística em Portugal. É essa a origem da grande dívida familiar. Foram os portugueses que criaram cidadãos, livres e soberanos, não a República.

Alusões a casas, ruas, praças, paisagens, vizinhos, amigos, familiares, constituem um corpo de experiência que fazem desta viagem algo entre Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, e Ulisses, de Joyce, em busca de emancipação formal. A transformação do espaço da conferência em muitos outros, graças ao gesto e à voz, e a condensação dos tempos num só, graças ao despojamento, por um lado, e à acção da consciência sobre a memória, por outro, criam a cena teatral.

As histórias de Rui Catalão são um pouco como os blusões que contrabandeou desde Marrocos, na juventude, com a mãe, para aumentar o rendimento familiar (aventura principal da conferência Conquista de Ceuta). Virados do avesso, presos nas calças atrás das costas, passam como se nada fosse. Uma vez do lado de cá da fronteira, valem ouro.
 

 


 

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