Contos de fadas em Brooklyn

A Patti Smith e o Robert Mapplethorpe destas páginas são de uma inocência que o tempo não poderia conservar

Patti Smith saiu de casa dos pais aos 20 anos. Dentro da mala axadrezada, quase vazia, cabiam as "Iluminações", de Rimbaud - o seu companheiro de fuga era um livro, e não um rapaz de reputação duvidosa e charme delinquente -, e uma imaculada farda branca de empregada de mesa, a aposta da mãe na passagem de testemunho da sua carreira. Patti usou-a uma vez, manchando-a ligeiramente no único dia da sua vida em que tentou seguir as pisadas familiares. À primeira, derramou um prato para cima de um cliente. Foi despedida naquele exacto momento, desfez-se da farda e da vergonha numa casa de banho pública e partiu de consciência tranquila para o propósito que realmente a levara até Nova Iorque: ser livre.

É desta liberdade que se fala em "Apenas Miúdos". Uma demanda por uma vida artística ensopada em romantismo, que Patti Smith recorda evitando altos e baixos: não há aqui hemorragias literárias, uivos de dor, nostalgias lamechas, ajustes de contas, relatos espectaculares de relações com drogas ou devassa autoproposta da intimidade. Nada de escatologia da alma, de glorificação da decadência ou de podres a deitar por fora.

"Apenas Miúdos" não é sequer uma biografia. É uma história. A promessa de Patti a Robert Mapplethorpe, no leito de morte deste, de que havia de contar os dias em que os dois funcionavam como um. A história de um encontro de dois jovens à deriva, num compromisso com a arte, dispostos a dormir na rua, a partilhar jantares de pacotes de biscoitos mais leite e café, que se bastavam a si mesmos - tudo isto contado pela cantora e poeta como que por via de uma sublime suspensão da realidade, que parece empurrar o seu relato para terras da ficção. A candura e a honestidade com que se alinham as palavras que a unem ao fotógrafo, pintor, amante, amigo, "muso" e cúmplice Robert Mapplethorpe impedem a queda no drama fácil e na pieguice. "Apenas Miúdos" é tocante precisamente por isso - porque, de alguma forma, não procura sê-lo. Como confidenciou em entrevista por alturas da atribuição, em Novembro de 2010, do National Book Award na categoria de não-ficção, o seu desejo foi "escrever a verdade, mas contá-la como uma história, como um conto de fadas moderno".

Confidência: a vida artística de Patti Smith nasceu no dia em que, aos 19 anos, deu igualmente à luz uma criança que escolheu não criar. Foi nesse dia que recusou os horizontes que lhe balizavam o futuro em New Jersey e elegeu a arte como único destino possível para o seu caminho: "Um irresistível sentido de missão eclipsou os meus receios. Atribuí isso ao bebé. Haveria de cumprir o meu dever e manter-me-ia forte e sã. Jamais olharia para trás. Não regressaria à fábrica nem à escola para professoras. Iria ser uma artista" (p. 31). Nesse mesmo dia, garante-nos, Mappethorpe ajoelhava-se diante de uma pintura sua e fazia igual promessa. O registo autobiográfico inspirado em "A Campânula de Vidro", de Sylvia Plath, e "Diário de um Ladrão", de Jean Genet, encarrega-se depois de nos colocar na mesma sala ampla desolada, Patti e Robert a um canto, enfiados debaixo de cobertores, ela a contar-lhe as histórias de infância que os distraíam da fome e ajudavam a erigir um encaixe raro. O poder evocativo de Smith é dessa grandeza porque mantém o mesmo espantoso equilíbrio que os seus escritos para canções ou declamação: a carga poética não constitui fuga à realidade. É poesia física, palpável, com hálito a álcool e a suor, com frio e fome, mas maravilhosamente suspensa acima de tudo isto.

Aquilo que nos engancha em "Apenas Miúdos" é o retrato não só de uma época mítica de Brooklyn e do Chelsea Hotel - finais de 60, princípios de 70, Burroughs e Ginsberg passeando pelas páginas -, mas sobretudo de um par de artistas que acreditavam o suficiente na sua arte para a ela se entregarem abnegadamente. Não por acaso, a Patti e o Robert que encontramos nestas páginas são de uma inocência que o tempo não poderia conservar, de um tempo em que o dinheiro só chegava para um bilhete nos museus - um entrava, via as exposições, e depois ia contar ao outro - e em que ela adoptava para o seu emprego na livraria Scribner uma farda inspirada na Anna Karina de "Bando à Parte", de Godard. Aqui, eles são dois anónimos, num processo de descoberta: Patti sedenta de sorver o mundo, Robert ansioso por se decifrar a si próprio.

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