Contemplar por aí

Há uns anos, Benjamin Verdonck teve uma conversa com um amigo num bar em Berlim que terminou com a seguinte conclusão: o melhor que um artista pode fazer é retirar-se graciosamente. Precisamente o que experimenta em notallwhowanderarelost, que agora chega ao Porto e a Lisboa.

Foto
Kurt Van Der Elst

Benjamin Verdonck (Antuérpia, 1972) não é um homem, é uma cruzeta com casaco, calças de ganga, botas e duas mãos a saírem-lhe das mangas, as mesmas mãos que depois, já reposta a cabeça de onde saiu este notallwhowanderarelost, fazem um teatrinho de objectos acontecer entre frases enigmáticas que poderiam ter saído de um bolinho da sorte ou de um livro de aforismos budistas (mas não: saíram de um anúncio de perfumes que há uns anos viu num outdoor quando passeava de carro com os amigos e que o deixou ligeiramente enjoado) e as idas e vindas de uma série de triângulos com vida própria (e algum medo das alturas) que deslizam pelos carris do palco portátil que ele andava a sonhar construir, meter numa mala e despachar directamente para o porão do avião desde que se fez actor.

Sim, há triângulos amarelos e vermelhos, e belas frases do argentino Jorge Luis Borges (“O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”, reza o parágrafo retirado de Nova Refutação do Tempo), latas de Coca-Cola e mais umas coisas que ele viu escritas na porta da casa-de-banho de um bar em Berlim onde teve uma conversa que, para efeitos do que se passa em notallwhowanderarelost, foi uma epifania. “Wahrheit = Konkret was written on the toilet door. Real men don’t eat honey, they chew on bees”, que traduzido poderá querer dizer algo como: “Verdade = Betão estava escrito na parede da casa-de-banho. Os homens a sério não comem mel, mastigam abelhas.” Ou então puxam uns cordelinhos e fazem deslizar formas geométricas, como Benjamin Verdonck neste notallwhowanderarelost com que o Teatro Municipal do Porto – Rivoli celebra hoje e amanhã o Dia Mundial das Marionetas, às 21h30, e que de 24 a 27 aterra no Teatro Maria Matos, em Lisboa, para festejar, com entrada gratuita, os Dias do Teatro.

Pois. Talvez estejamos um pouco perdidos, como alguns daqueles que vagueiam – e perdidos também porque Benjamin Verdonck, enquanto puxa um fio e solta outro, está entretido a “desaparecer graciosamente”, por respeito à conclusão dessa conversa num bar de Berlim em que K. lhe respondeu que, aqui chegados, isso é o melhor que um artista pode fazer. Senhoras e senhores, estamos mesmo condenados a flutuar no espaço (e já agora no tempo), como naquele disco dos Spiritualized que o nosso amigo dos triângulos também tem idade para ter ouvido. O Muro de Berlim já tinha então ido abaixo, e pudemos descansar em paz: “O Muro de Berlim era demasiado pequeno. Só nos serviam mini-latas de cerveja e metade de uma Bratwurst. Aí conheci o K.”E K., bem, K. tornou-se tão importante para esta performance como o anúncio daquele perfume cuja marca Benjamin Verdonck já nem sequer consegue reproduzir (talvez por tanto ter querido esquecer). Quando as portas se abrem, quando as cortinas sobem, o artista belga está sozinho com esses “vestígios de histórias” que nos cabe a nós, espectadores um pouco perdidos, completar. Se estivermos para isso, porque ele, Benjamin Verdonck, também acha bem se escolhermos antes sentar-nos a ver o tempo passar.

Caixa mágica
De volta a este planeta dos triângulos e das frases que felizmente não compreendemos muito bem. “Tinha vontade, urgência até, de fazer uma peça contemplativa, um gesto contemplativo, e a razão foi ter ficado muito impressionado com um encontro que tive em Berlim, uma conversa com um amigo em que discutimos o que fazer com o mundo, com as pessoas. A conclusão a que chegámos, ‘to whithdraw gracefully’, pareceu-me uma bela metáfora do que a arte é para mim. E então decidi trabalhar em direcção a essa contemplação”, explica ao Ípsilon Benjamin Verdonck, ao telefone noite dentro desde Antuérpia.

Como a partir daí chegou à maquete de um teatro de mesa móvel e modular que tanto pode aparecer como desaparecer em qualquer lugar é da ordem do mistério, como muito do que se passa em notallwhowanderarelost. “Estipulei que lá dentro não podia haver se não movimentos muito básicos – podes vir de frente ou de trás, da esquerda ou da direita, pouco mais – e construí com eles uma coreografia primitiva com a forma geométrica mais simples, o triângulo (um triângulo é fácil de movimentar: pode cair, pode equilibrar-se numa ponta), que em certo sentido ilustra a frase do anúncio do perfume. É incrível como essa frase, que por um lado achei nojenta por estar a vender uma inutilidade e por outro achei linda, ficou comigo tanto tempo. Gosto dessa tensão. Tem a ver com a fraqueza que é indissociável da Humanidade: assim que atinges a sabedoria tentas vendê-la de forma estúpida… Mas acho mesmo que não é por estares à procura de alguma coisa que é incerta e pouco clara que estás necessariamente perdido”, continua.

Era uma ambição antiga, a caixa mágica que agora experimenta em notallwhowanderarelost. “Uma vez vi uma peça em Paris, Le Cirque de Calder, que me inspirou imenso: puxas um cordelinho e aparece um leão ou um elefante de arame que provoca um sorriso enorme na cara de um velho que bebeu de mais. Desde então quero fazer algo assim; tentei várias vezes e nunca consegui. O meu trabalho sempre esteve próximo das artes visuais e houve outras alturas em que puxei fios para fazer acontecer coisas. Gosto dessa ligação entre a técnica e o palco e apaixona-me o tempo em que ainda era visível a ligação entre as duas coisas, embora saiba que é romântica, essa nostalgia por algo que já passou”, diz.

Foi essa simplicidade que procurou – e que encontrou. “É bom quando as pessoas percebem o truque, e aqui faço tudo às claras. As pessoas sentem-se ligadas, sentem-se comovidas, ainda que aquilo que eu lhes dê sejam apenas os restos de uma história. A minha ‘retirada’ tem a ver com isso. No fim acabas a escrever um poema com vestígios de frases, vestígios de cores, vestígios de formas – um poema que é um grande segredo que eu partilho com aquelas 70 pessoas.”

Grande segredo: bem vistas as coisas, notallwhowanderarelost não é “uma peça que tenta chocar o público ou a burguesia”, mas bem lá no fundo funciona como “contraponto a este mundo capitalista e frenético em que tudo tem um preço”. “O melhor para mim é quando as pessoas me dizem que enquanto assistiram à peça se reapropriaram do tempo. Percebes ou não percebes, gostas ou não gostas, mas passas uma bela hora – quase como numa sessão de ioga.” Já podemos respirar fundo.

Sugerir correcção
Comentar