Como Joana Villaverde libertou 15 gazelas em Jaffa e outras memórias sobre o medo

Em 2014 e de novo já este ano, a artista esteve a trabalhar na Palestina. Em Abril expõe o resultado em Avis, no Alentejo.

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Em Jericó, Joana Villaverde pintou nas pedras as suas gazelas em corrida dr
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Jericó dr
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Palácio de Hisham dr
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Torre do Relógio em Jaffa dr
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Torre do Relógio em Jaffa dr

Era sábado. Havia mercado e os cafés estavam cheios quando a artista plástica portuguesa Joana Villaverde chegou a Jaffa. A maior parte dos seus amigos palestinianos não pode entrar nesta antiga cidade portuária, hoje em território israelita e anexada a Telavive. Aliás, foi precisamente por eles não poderem que ela lá foi. Tinha uma missão auto-imposta: homenagear a escritora Suad Amiry. E ia “aterrorizada”.

Com Sharon e a Minha Sogra (2004) e Não Há Sexo na Cidade (2008), publicados em Portugal, Amiry é também a autora de Nothing to Lose but Your Life – ou Murad, Murad, como é conhecido no mundo árabe (2010). E foi esse livro que no ano passado levou Joana Villaverde pela primeira vez à Palestina.

Com o humor habitual, num dos capítulos, intitulado Animal’s nightmare, Amiry traça uma parábola sobre a forma como os animais não correm hoje em liberdade nos Territórios Palestinianos Ocupados, dando sistematicamente de cabeça contra os 760 quilómetros do muro de cimento que o lado israelita conhece como Cerca de Segurança e a que os palestinianos chamam Muro de Segregação Racial.

Era sobre estes animais – sobretudo a gazela, símbolo de pureza, liberdade e vida – que Joana Villaverde estava há já algum tempo a trabalhar, quando foi convidada pela Qattan Foundation para uma residência de 60 dias em Ramallah.

A estadia ficou marcada para os meses de Junho e Julho. Acabou por coincidir com a guerra de 50 dias desse Verão – o mais mortal dos conflitos da última década na Faixa de Gaza.

Joana Villaverde esteve em Ramallah – mas também em Jenin, Hebron, Salfit, Belém... “Aprendi que o valor da vida, o peso da vida humana, muda, altera-se consoante o lugar onde se está. Aprendi que a vida humana será igual para todos quando esse lugar se chamar solidariedade. Em Jenin ouvi tiros à noite, porque é assim. Porque Jenin, todas as noites, recebe visitas de militares israelitas que ali têm uma das suas bases. Vão em treino. Disparam. Em Hebron vi ruas por onde os palestinianos não podem passar, porém moram nessas ruas. Como os bichos, para sair de casa, saem pela janela das traseiras ou pelo telhado.”

São palavras de um texto que a artista escreveu e que a 29 de Novembro último leu em Lisboa nas comemorações do dia internacional de solidariedade com o povo palestiniano. Entretanto, em Fevereiro, voltou à Palestina para um workshop de duas semanas em Jericó. E no último dia foi a Jaffa com 15 autocolantes de gazelas enfiados no bolso.

Originalmente, a família de Suad Amiry é de Jaffa, mas nenhum deles pode hoje visitar a cidade nem, por consequência, as suas antigas casas, hoje ocupadas por famílias israelitas. Como homenagem a essa perda e, sobretudo, à falta de liberdade de movimento, Joana Villaverde espalhou as gazelas pelas ruas que eles não podem percorrer: gazelas junto ao mercado, na porta de um café, no vidro de um carro, numa das paredes da emblemática Torre do Relógio otomana da Rua Yesef...

Não havia real motivo para medo. De resto, a artista vinha de fazer um trabalho semelhante na Palestina – em Belém, recolheu pedras atiradas durante os habituais conflitos junto ao muro; em Jericó, pintou sobre elas as suas gazelas em corrida, espalhando-as depois aleatoriamente por vários espaços do Palácio de Hisham, onde o famoso mosaico da Árvore da Vida tem representadas várias gazelas, uma delas a ser subjugada e devorada por um leão.

Mas dizíamos que não havia real motivo para medo. Acontece que em 2014, nas suas idas e vindas entre a Palestina e Israel, Joana Villaverde optou por se deslocar como os palestinianos comuns: de autocarro. Quer dizer que apanhou o 18 para fazer os 15 quilómetros entre Ramallah e Jerusalém. Assim, acabou por conhecer a vida no checkpoint de Qalandia, “o checkpoint mais duro e feio de toda a Palestina”.

Foi a 25 de Julho. E foi sair do autocarro de um lado da fronteira e conhecer Qalandia para voltar a subir ao autocarro do lado de lá. Qalandia são baias e torniquetes feitos de barras de ferro, palestinianos a avançar em magotes como gado no matadouro, jovens militares israelitas “armados até aos dentes” a dar ordens aos gritos. Talvez quem conhece Qalandia fique para sempre com medo de passar a fronteira. Talvez tenha nascido ali o “terror” do dia da libertação das gazelas. 

Agora Joana Villaverde ri-se do seu medo. Mas não se ri do medo dos palestinianos, quando conta como vivem em constante alerta. “Não se dorme”, diz, “uma coisa que aprendi lá é que a palavra dormir não quer dizer a mesma coisa em todo o lado.” 

O som de helicópteros a voar sobre as cabeças todas as noites em Ramallah, os F16 a rasgar o espaço aéreo sobre Jericó. “Há muitas formas de domínio, de mostrar poder.”

Da primeira vez, a visita foi uma forma de perceber se o projecto que estava a desenvolver em Portugal caminhava na direcção certa. Percebeu que não. Redireccionou-o. O que vai expor em Abril num espaço abandonado da vila de Avis, no Alentejo, onde vive, conta, à sua maneira, uma história de amor. Uma história de amor por um país.

“O amor normalmente não se explica, ou explica-se mal, tem-se! E eu chego a Portugal com o corpo e o coração ligados àquele lugar, julgo que para sempre.”

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