A contemplar o tempo perdido

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Harold Lloyd em Safety Last, 1923: montando excertos de filmes em que, como neste, aparecem relógios, Christian Marclay leva espectadores a sentarem-se durante horas, literalmente assistindo ao desaparecimento do tempo das suas vidas DR
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Harold Lloyd em Safety Last, 1923: montando excertos de filmes em que, como neste, aparecem relógios, Christian Marclay leva espectadores a sentarem-se durante horas, literalmente assistindo ao desaparecimento do tempo das suas vidas DR
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Harold Lloyd em Safety Last, 1923: montando excertos de filmes em que, como neste, aparecem relógios, Christian Marclay leva espectadores a sentarem-se durante horas, literalmente assistindo ao desaparecimento do tempo das suas vidas DR
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Harold Lloyd em Safety Last, 1923: montando excertos de filmes em que, como neste, aparecem relógios, Christian Marclay leva espectadores a sentarem-se durante horas, literalmente assistindo ao desaparecimento do tempo das suas vidas DR

Christian Marclay gosta de criar algo novo, ao vandalizar carinhosamente algo velho.

Remisturou músicas – virando-as ao contrário e puxando para primeiro plano os estalidos e os silvos – e remisturou objectos que criavam música. Baseou dezenas de projectos nos seus discos de vinil: marcando-os com imagens, usando uma agulha de gira-discos como torno; derretendo-os em cubos; empilhando-os em negras colunas ameaçadoras. Até amarrou um gira-discos ao seu peito, como se fosse uma guitarra, e filmou-se enquanto batia em si próprio com um álbum de Jimi Hendrix. Afirma que o impulso que anima enquanto artista tem sido retirar “imagens e sons com que todos estamos familiarizados e reorganizá-los de formas pouco habituais”. Numa colagem de 1991, arranjou capas de álbuns de forma a que a cara e o torso de Michael Jackson se colassem, de forma bizarra, às pernas nuas e cintilantes de duas mulheres (uma negra, uma branca).

Marclay, figura incontornável da cena musical de East Village (Nova Iorque) nos anos 80, era conhecido como DJ de vanguarda – no final da década de 70, tinha sido um dos primeiros a utilizar a técnica de scratch nas actuações, tratando os pratos do gira-discos como instrumento. Durante os seus DJ sets, por vezes quebrava LPs e, qual Frankenstein, colava os pedaços com fita-cola, e tocava os soluços que daí resultavam. Para continuar a progredir como artista, não necessitava apenas da sua endiabrada imaginação; precisava também de materiais para manipular.

Marclay, que tem agora 57 anos, mudou-se para Londres, de forma a poder estar junto de Lydia Yee, a sua companheira, que acabara de ocupar o cargo de conservadora na Barbican Art Gallery. Nascido na Califórnia mas tendo crescido na plácida Suíça, detesta melodramatismos e exibicionismos, e não se preocupou por deixar para trás as suas quinquilharias e velharias. Mas após chegar a Londres sentiu-se à deriva. “O que estou aqui a fazer?”, perguntava a si próprio. “Como é que vou conseguir trabalhar?” O apartamento que tinha alugado com Lydia Yee, perto da Barbican, mal chegava aos 150 metros quadrados de área. Apesar de ter peças suas nas colecções permanentes de alguns dos principais museus do Mundo – incluindo o MOMA [Museu de Arte Moderna de Nova Iorque], o Whitney e o Centro Pompidou -, não podia pagar um grande estúdio em Londres. Acabou por se resignar a um ficar com um cantinho, onde encaixou uma secretária de 1,5 metros, num escritório partilhado situado no quarto andar de um estreito prédio na zona de Clerkenwell. Uma janela dava para um pátio interior, onde se apinhava uma massa de carros esmagados e nos quais membros do quartel de bombeiros local simulavam a extracção de vítimas de acidentes. Era regularmente incomodado com falsos gritos de “Socorro!”. Mas Marclay não precisava de grandes luxos. Veste calças e camisas largueironas e desabotoadas que fazem as suas longas pernas parecer andas. A sua face esbranquiçada é deixada à vontade com o seu corte de cabelo discreto, à máquina e muito curto. Tem no pulso um relógio Swatch baratinho, de alumínio e cujos ponteiros têm a forma de lápis, e ele obedientemente segue as suas ordens: as suas horas de trabalho são intensas, dolorosas e regradas.

Dados os seus constrangimentos de espaço em Londres, decidiu que o seu primeiro projecto lá iria incluir materiais imateriais – ou seja, “media” digitais. Em vez de empunhar um X-acto, usaria o programa Final Cut Pr. “Tudo o que precisava era desta mesa e de um computador.”

Apesar de a maioria das obras anteriores de Marclay terem sido objectos tangíveis, ele já havia feito alguns curtos vídeos, e estes tinham recebido mais atenção por parte dos críticos do que a maioria das outras peças. Existia uma razão para isto: as colagens materiais de Marclay eram engraçadas e inteligentes, mas muitas vezes o seu impacto desvanecia-se após se ter percebido qual era a piada. (Filas de cadeiras restauradas e recheadas com pautas para piano e imagens de instrumentos musicais? Musical Chairs [Cadeiras Musicais], de 1999.) Adicionar a dimensão temporal impregnava a fineza de espírito de Marclay com drama. A sua melhor escultura, Tape Fall [Queda de Fitas], de 1989, já tinha dado indicações deste potencial. Um gravador/reprodutor de fitas magnéticas, colocado no alto de uma escada, toca sons aquáticos, mas o segundo enrolador de bobina desapareceu, pelo que as fitas magnéticas caem em cascata até ao chão.

O vídeo oferecia a Marclay outra forma de jogar com o tempo. Em 1995, completou uma rapidíssima montagem de pedaços de filmes de Hollywood mostrando actores a efectuar uma chamada telefónica. A “conversa” de sete minutos era tão hilariante e pomposa como o diálogo numa peça de Harold Pinter. (“Querida, sou eu.” “O quê?” “A rapariga morreu.” “Tens a certeza? Não há qualquer dúvida na sua identificação?” “Ah… bem, não exactamente.” “Estou tão confusa.”) A peça, Telephones, era, de uma forma discreta, bastante revolucionária: um dos primeiros mashups em vídeo, foi criada uma década antes de o género se tornar inexorável por todo o YouTube. Tal como os seus descendentes digitais, Telephones apresentava uma qualidade demolidora: para parecer inteligente, fez com que o seu material de base parecesse parvo. (A Apple mais tarde pediu-lhe autorização para utilizar o vídeo no anúncio de lançamento do iPhone; quando Marclay recusou, a empresa difundiu uma cópia seguindo a mesma ideia.)

Repetiu a experiência com Crossfire [Fogo Cruzado], de 2007, ensurdecedora instalação de grandes planos de armas a disparar, especialmente o plano preferido dos realizadores de filmes da acção – o olhar para dentro do cano. Marclay editou os clipes num loop de ritmos inquietantes – batidas pulsantes de tecno, solitários bombos ribombantes – e projectou quatro montagens sincronizadas nas paredes de uma sala escura. A sua organização de violência aleatória era hilariante e atordoante: devíamos dançar ou fugir dali? No entanto, à medida que os minutos passavam Crossfire tornava-se opressiva; sentíamo-nos como um ladrão a ser perseguido num húmido beco de um film noir, sem nenhuma vedação de arame que nos oferecesse possibilidade de fuga.

Parte do fascínio de Marclay pelos arquivos cinematográfico relacionava-se com a forma como resistiam à transfiguração. Não é difícil transformar um som gravado numa abstracção alienada, diminuindo a sua velocidade ou moldando-o num novo ritmo. Mas se cortarmos um único fotograma de um filme, a sua especificidade mantém-se nele: Audrey Hepburn, Givenchy, Manhattan, 1961. Marclay questionou-se se conseguiria construir a partir de pedaços de películas conhecidas um filme diferente, um filme com a sua própria lógica interna, o seu ritmo e a sua estética. Deste ponto de vista, as melhores colagens combinam o “aspecto de memória” – o reconhecimento da fonte do material – com a prazerosa violência da transformação. Se Marclay pudesse tornar o céu verde por um dia, ele fá-lo-ia.

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A sua mais entusiasmante incursão na área de colagem de filmes aconteceu em 2002, com Video Quartet [Quarteto de Vídeo], encomendado pelo Museu de Arte de São Francisco e posteriormente adquirido pela Tate. Quatro montagens com imagens de actores e músicos a tocar instrumentos, a cantar ou a dançar surgem, em uníssono, numa fila de quatro ecrãs. Como num ensemble de música de câmara, um “intérprete” encarrega-se da principal linha melódica – Judy Garland a cantar, Harpo Marx a dedilhar a harpa – enquanto os outros clipes providenciam a orquestração e o ritmo. Video Quartet possuía o tumulto calculado de uma composição de Charles Ives, e muitas vezes revelava-se hilariante. Marclay repetia os estrondos de Ann Miller a fazer sapateado uma e outra vez, como se fosse um poderoso solo de bateria. Tal como os ecrãs trocavam melodias entre si, também enviavam rimas visuais: o crepitar de uma roleta de casino num ecrã era contrabalançado pelo remoinho de um prato de gira-discos noutro. Os visitantes do museu muitas vezes aplaudiam no fim – uma raridade na videoarte, cujos praticantes se orgulham de massacrar os espectadores. Mas Video Quartet, que apenas dura 14 minutos, era leve em termos composicionais. Estava na altura de passar para wagneriano.

Em Clerkenwell, Marclay lembrou-se de uma obra de performance que uma vez apresentara em Manhattan. Nela combinara pedaços de filmes numa “partitura de vídeo” para um grupo de músicos. As imagens – um surfista a cair da prancha, uma flor a desabrochar – foram escolhidas para provocarem diferentes sons. Deu à obra o título de Screen Play [Argumento]. (Um fanático de Duchamp, partilha com o Mestre o gosto por terríveis trocadilhos.) Apesar de Marclay ter encorajados os seus intérpretes a darem largas aos seus instintos, também queria que eles soubessem o seu lugar na partitura – isto ajudá-los-ia a darem estrutura dramática à performance. Decidiu que as imagens dos relógios “seriam interessantes de utilizar para marcar o tempo, para dizer ‘Estão a ver os segundos a passar, e sabem como é que vai acabar, porque estão efectivamente a ver o tempo’”.

Um técnico estagiário foi contratado para pesquisar a Internet à procura de relógios. Após colocar um plano – um rapaz na cama, a olhar para o seu relógio às 4.20 da manhã – nos primeiros compassos de Screen Play, Marclay teve um pensamento perigoso: “Uau, não seria espectacular encontrar imagens de relógios para cada minuto de todas as vinte e quatro horas?” Possui uma mente algorítmica e, tal como na obra de Sol LeWitt, muitas das suas melhores peças foram concebidas a partir de um conceito tão simples e definido como uma receita. A colagem que daí resultou, percebeu, seria estranhamente funcional; os fragmentos, quando bem sincronizados, diriam as horas tão bem como um Rolex. E, dado que recolheria pedaços de um grande número de filmes, o resultado consistiria numa heterodoxa antologia de cinema. Mas havia também ressonâncias mais sombrias. As pessoas vão ao cinema para perderem a noção do tempo; este vídeo iria oprimir os espectadores com uma percepção de quanto tempo tinham ficado a definhar na escuridão. Iria evocar o mais preguiçoso dos prazeres modernos – a constante mudança de canais televisivos -, só que agora o tempo desperdiçado seria dolorosamente destacado.

Não seria o primeiro filme com uma duração de exactamente um dia. Essa distinção vai para 24 Hour Psycho, uma obra de 1993 de Douglas Gordon, que esticou o tenso thriller de Hitchcock até o tornar em arte excruciantemente poderosa. E Andy Warhol, no seu filme Empire, de 1964 – oito horas da imagem parada do Empire State Building a desaparecer na escuridão – já havia criado uma obra cuja finalidade era colocar os espectadores “a ver o tempo passar”. Havia também uma tradição de cinema de avant garde que, com diferentes níveis de obscuridade, examinava as qualidades temporais dos filmes. Mas a contribuição de Marclay para o cinema de longa duração seria mais agradável de assistir. Ele pressentia um desafio assustador. Se o seu filme fosse suficientemente sedutor, poderia conseguir atrair as pessoas a sentarem-se durante horas, literalmente assistindo ao desaparecimento do tempo das suas vidas. Apesar de a qualquer momento o filme poder apresentar a leveza de uma apresentação de Hollywood, considerado na sua totalidade seria um “memento mori” ainda mais pesado do que Tape Fall.

Marclay “tinha tido aquele clique”, como diz, mas havia algo que o perseguia: quantos clipes seriam necessários para preencher vinte e quatro horas? Na maioria das cenas dos filmes, a câmara demora-se apenas uns segundos num relógio. “Não tinha coragem para começar, porque sabia que seria uma luta interminável”, afirma. Mas decidiu ver se conseguia construir o definitivo monumento da era da remistura.

Propôs o projecto à White Cube, a orgulhosamente elegante galeria que é a sua representante em Londres. “Apesar de nenhum de nós ter a certeza de que seria possível concretizá-lo, o conceito era tão apelativo que nos comprometemos totalmente”, relembra Jay Jopling, o proprietário da galeria. O orçamento apresentado por Marclay ultrapassava os 100 mil dólares. O artista-estrela da White Cube é Damien Hirst, pelo que comparativamente o valor apresentado por Marclay não parecia elevado. Para além disso, os custos seriam parcialmente cobertos pela Paula Cooper Gallery, que iria exibir o vídeo em Nova Iorque.

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Craig Burnett, director-adjunto na White Cube, disse a Marclay para considerar os primeiros seis meses como sendo “um estudo de praticabilidade”; no final, ele já teria noção se o arquivo global do cinema conseguiria acomodar a sua visão de cortes finíssimos. Uma questão que não deu problemas a Marclay foram os direitos de autor, dado que antes ninguém se opusera à sua arte de apropriação. Ele tem uma teoria para explicar isto: “Se fizermos algo de qualidade e interessante e não ridicularizarmos ninguém nem ofendermos, os criadores do material original vão apreciá-lo.”

Para Video Quartet, passara meses a aborrecer funcionários da Kim’s Video, em East Village, para conseguir os seus fragmentos de filmes. Mas desta vez precisava de caçadores especializados. “Podia eu próprio fazê-lo, mas levar-me-ia dez anos para recolher tudo”, conta. Mas, apesar de tudo, não queria deixar a construção nas mãos de outros, como fazem Jeff Koons ou Takashi Murakami. Acredita que “a arte está toda nos detalhes”, por isso comprometeu-se a tratar ele próprio daquilo que era mais importante: a edição e montagem. A chave para os seus projectos de vídeo, na sua opinião, estava na habilidade nas transições, que asseguravam ao espectador que uma inteligência deliberada controlava o fluxo das imagens. Também sentia que o relógio de vídeo não lançaria a sua magia se mantivesse os cortes abruptos dos seus primos da Internet – aquelas compilações de supercuts de clichés de Hollywood, como heróis de filmes de acção a gozarem com a frase “We’ve got company” [Parece que temos companhia.]. Ele queria que os seus supercuts imitassem os ritmos de uma longa-metragem de Hollywood. Os fios podiam ser recolhidos por outros, mas seria Marclay a tecer a tapeçaria.

A monstruosa criação de Marclay necessitava de um título. Pensou em alguns dos seus habituais trocadilhos: Time Piece, Clock Work. Depois ele e Burnett discutiram o assunto e decidiram que a obra era demasiado grandiosa para ser banalizada com jogos de palavras. O melhor, decidiu, seria chamar-lhe The Clock [O Relógio].

A pedido de Marclay, a White Cube colocou um anúncio de “Precisa-se de ajudantes” na Today Is Boring, loja de aluguer de DVDs na Kingsland Road. Seis jovens foram contratados para visionar DVDs e fazer cópias digitais de qualquer cena que mostrasse um relógio ou aludisse ao tempo. (Sophia Loren para Marlon Brando: “Não posso aparecer às onze da manhã com um vestido de noite!”) Os ficheiros foram identificados com títulos fáceis de pesquisar: “1124 – miúdo à espera na rua/velho olha para o relógio – Paper Moon [Lua de Papel]”. Os assistentes gravaram as suas descobertas numa grelha do Google, para evitar repetições. Dado que uma versão rival poderia ser rapidamente compilada através da Internet por outras equipas, os assistentes assinaram acordos de confidencialidade.

Todas as tardes, Marclay recebia novos pedaços de filme: “a colheita do dia”. Ao princípio, apenas recolhia ficheiros dispersos, mas acabou por perceber que já tinha suficientes para criar “dobradiças” entre eles. Quantas mais “dobradiças” imaginava, mais criativas elas se tornavam. Marclay notou que, às dez e meia da noite, um plano de David Strathairn, a apresentar as notícias no papel de Edward R. Murrow em Good Night and Good Luck [Boa Noite e Boa Sorte], podia conjugar-se com um de Dustin Hoffman a ver televisão, em Tootsie [Quando Ele Era Ela]. Para criar continuidade, o diálogo de Murrow foi prolongado até ao clipe de Tootsie, com o volume reduzido.

Marclay apreciava estas pequenas incongruências. Queria fazer um filme excelentemente editado mas que denunciasse a falsidade da montagem. “Ao recolocar os excertos em tempo real, está-se a contradizer aquilo que um filme é”, explica. “Tomamos consciência de como o filme é construído – todos aqueles mecanismos e técnicas que são constantemente utilizados. Por exemplo, se alguém se vira subitamente, ficamos à espera de ver outra pessoa no plano seguinte. Um actor olha para o seu relógio e, de repente, temos um grande plano do relógio. Mas se o primeiro plano é a preto e branco e o seguinte é a cores, sabemos que fomos enganados.”

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

Estes absurdos relembram a seminal colagem de filmes A MOVIE, de 1958, por Bruce Conner, que sobrepunha pedaços de velhos filmes para obter um efeito cómico. “Ele influenciou a minha percepção acerca da montagem”, diz Marclay. “Admiro as suas estranhas transições.” Na sequência mais famosa do filme, o comandante de um submarino vê qualquer coisa inesperada através do periscópio: uma sensual rapariga de biquíni. A colagem de Conner goza o espectáculo: o capitão aponta um torpedo à rapariga, e a imagem seguinte é de uma nuvem de cogumelo nuclear.

Marclay queria que The Clock incorporasse um ou outro fragmento bizarro – uma explosão de O Aviador, às 11h17 da manhã, continuava para outro de Al Pacino com ar desorientado, em 88 Minutos -, mas sentiu que apoiar-se demasiado em melodrama não iria funcionar num vídeo tão longo; seria como compor uma ópera apenas com toques de pratos de bateria. Para inspirar uma nauseante contemplação do tempo perdido, enfatizou mais momentos acidentais: uma mulher em frente ao espelho a aplicar desodorizante, um homem deprimido a debater-se com a sua gravata torta. Entre as 19h09 e as 19h18 surgem quatro pedaços de Que la Bête Meure [A Besta Deve Morrer], de Claude Chabrol – imagens de um cigarro deixado a arder num cinzeiro. (Ao pé está um relógio de mesa.) “O cigarro a arder é o símbolo do século XX para o tempo”, declara Marclay. “Enquanto memento mori, costumávamos mostrar uma vela, mas um cigarro é muito mais moderno. Mas é mesma coisa – vemos o tempo a consumir-se.”

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

The Clock transformou actores numa espécie de memento mori mais assustador. Às 12h27 aparece um segmento de Repulsion [Repulsa] com uma Catherine Deneuve, então com 21 anos, resplandecentemente fresca. Quatro horas mais tarde, ela está três décadas mais velha, em Ma Saison Préférée [A Minha Estação Preferida], uma esposa amargurada que intencionalmente atira um relógio de uma lareira. À 1h51 da manhã, Jack Nicholson é um frenético delinquente juvenil em The Cry Baby Killer; às 16h59, é o herói barrigudo e calvo de About Schmidt [As Confissões de Schmidt], olhando para o relógio do seu escritório enquanto sonolentamente aguarda pela reforma. O fundo melancólico do vídeo foi, em parte, uma escolha estética, mas foi também ditado pelo material. Afinal de contas, olhamos para relógios para nos algemarmos a um horário. Nos filmes e na vida, os olhos que consultam um relógio costumam parecer desapontados, irritados ou preocupados. Às 11h30, este ponto é sublinhado por uma montagem de pessoas agitadas a gritar coisas como “Preciso de mais 10 minutos!” ou “Não há tempo para isso!”. Nas mãos de Marclay, os relógios tornaram-se instrumentos que destroem a satisfação, tal como acontece quando Julia Roberts, ao acariciar sonhadoramente Clive Owen na cama, se apercebe, com consternação, que “Já é meia-noite e um quarto!”. O principal assistente de Marclay, Paul Anton Smith – um canadiano lacónico, de cabelos compridos e apaixonado pelo cinema da Época Dourada –, percebeu que o seu chefe desejava momentos que fossem “banais e simples mas visualmente interessantes”. Explica Smith: “Se aparecia alguém a fazer chá, era bom se fosse um filme dos anos 60 e fosse com uma chaleira com bom aspecto.” Outros assistentes não perceberam tão bem o que era esperado deles, relembra Marclay. Um rapaz, que pouco mais apresentava do que disparos de armas e “tipos com as cabeças a serem arrancadas”, foi despedido.

Os assistentes que sobreviveram especializaram-se em diferentes géneros, e todos eles forneceram imagens de relógios, excepto os filmes de Bollywood, que, curiosamente, não mostravam qualquer relógio. Marclay ficou muitas vezes surpreendido com as escolhas dos seus assistentes. “Eu provavelmente teria feito selecções diferentes. Mas temos que aceitar o que as pessoas nos trazem. Já trabalhei muito em colagens. E existe um elemento de acaso – nem sempre controlamos as coisas. Por que razão hoje descobri isto e não aquilo? Mas temos uma determinada coisa, e temos que fazer com que aquilo funcione. Acho que a vida é mesmo assim. Temos que lidar com o que quer que aconteça.”

Algumas sequências de The Clock eram inevitáveis – ao meio-dia, High Noon [em português, significa meio-dia em ponto]. Mas a obra de Marclay até esse material tornou estranho. No filme de Fred Zinnemann, essa hora fatal é precedida por uma série de faces ansiosas interpoladas com imagens de um relógio de pêndulo. “No filme verdadeiro está condensado”, explica Marclay. “Eu pus tudo outra vez em tempo real.” O seu trabalho desfez a ilusão central do filme. Teóricos como Henri Bergson aumentaram a falsidade da “duração” cinematográfica – a forma como o sorvedouro de uma longa tarde a beber pode ser captado numa sequência que dure apenas três minutos. Marclay afirmou o mesmo, mas de um modo visceral.

Apesar de The Clock subverter muitos lugares-comuns de técnicas cinematográficas, também embarcou noutros. Quando um filme enfatiza que faltam cinco minutos para as quatro horas, isso destina-se a fazer aumentar as expectativas ou a ansiedade. No vídeo de Marclay também existe um aumento artificial na tensão antes de quase todas as horas, e uma descompressão depois. Ele decidiu fazer comédia com isso. A jornada até ao meio-dia acelera-se até se alcançar a submissão, com a ruiva Lola a correr pelas ruas de Berlim enquanto Debra Winger se levanta da cama na Argélia e Leonardo de Caprio se despacha para apanhar o Titanic. Ao meio-dia e um minuto, o vídeo regressa abruptamente ao aborrecimento: Burgess Meredith, no papel de caixa de banco, colocando silenciosamente um sinal de “Caixa ao lado, por favor”. No final dos seis meses do período experimental, Marclay tinha juntado várias sequências alargadas, e comunicou aos responsáveis da White Cube que poderia alcançar o seu objectivo – em princípio, mas não podia dizer quando. O seu computador estava a ficar tão atravancado com dados que foi preciso juntar uma segunda máquina. Um Mac G5 ficou reservado para desde a meia-noite até ao meio-dia, e o outro para o resto do dia.

Se um realizador fizesse uma montagem de Marclay a editar o seu épico vídeo, mostraria um homem a envelhecer três anos enquanto estava fechado, de dez a doze horas por dia, em frente a um computador. Haveria muitos grandes planos de Marclay a queixar-se das dores nas costas. Por volta de metade da sequência, o punho direito do artista apareceria envolvido num suporte ortopédico em Velcro.

“Foram três anos terríveis”, diz Marclay. “Mas fiquei viciado em encontrar aquelas pequenas soluções. Dá uma certa pedrada. Juntamos duas coisas e ficamos, tipo, ‘oh, meu Deus, isto resulta!’. “ Admite que por vezes receava a chegada de mais clipes. “O pior era quando tinha trabalhado muito à procura de descobrir uma boa transição para as 10h46 e alguém trazia outra 10h46, com melhor imagem ou que funcionava melhor com a narrativa. Havia uma remodelação constante.”

The Clock começou a desenvolver motivos recorrentes: homens com ressacas esmagando relógios-despertadores, viajantes atrasados a correr em plataformas de estações de comboios. Estas recorrências esporádicas, sentiu Marclay, recompensavam a atenção dispensada e davam coesão ao trabalho. Temas mais diminutos, relacionados com uma determinada parte do dia, surgiam e depois esfumavam-se. Ao início da noite, Marclay inscreveu um padrão de mulheres a ficar desapontadas com os seus maridos. Às 19h14, Liam Neeson liga a Julianne Moore, que planeou uma festa-surpresa para ele, a dizer que perdeu o voo de avião para casa; quatro minutos depois, Julianne Moore, desta feita em Far from Heaven[Longe do Paraíso, diz a uma criada: “São quase sete e vinte e o Sr. Whitaker ainda não telefonou!” Às 19h19, Steve Martin promete à sua mulher: “Devo chegar antes das dez.” O toque final é dado por Katharine Hepburn, a preparar os lugares à mesa para um jantar elegante enquanto resmunga com o ausente Spencer Tracy: “É mesmo coisa dele! Já passam vinte minutos das oito.” Apesar de todas as piadas, o vídeo estava a surgir como o primeiro mashup profundamente emocionante.

A hora das cinco da tarde foi a primeira a ficar completa – com filmes em que muitas vezes as personagens são vistas a sair do emprego. À medida que as horas seguintes foram sendo preenchidas, aconteceram alguns golpes de sorte. Numa noite, Paul Anton Smith a visualizar The Woman in the Window [Suprema Decisão], um film noir de Fritz Lang. O cadáver de uma personagem, Claude Mazard, é encontrado nos esgotos, às 23h44. O filme corta para um grande plano do seu relógio de bolso, com um monograma gravado com as iniciais “C.M.”. Marclay tinha encontrado a sua versão de um cameo (breve aparição) de Hitchcock.

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

O método de edição e montagem expunha cruelmente a qualidade da representação de cada actor. Num segmento de sete segundos, a linha que separa o sentimento do fingimento torna-se cruelmente clara. Às 16h09 surge um plano de Mia Farrow em Rosemary’s Baby [A Semente do Diabo], deitada na sua cama; a sua cara revela de forma subtil que a sua inquietação irá transformar-se em loucura. Mas quando Sandra Bullock é vista, às 10h15, à espera de Hugh Grant numa sala de conferências, batendo com um lápis como se fosse um martelo pneumático, a sua ansiedade é tão artificial como o teatro kabuki.

Para manter os ambientes de trabalho de cada Mac limpos e ordenados, Marclay abriu uma pasta para cada hora. Esta decisão deu origem a uma estratégia narrativa: os clipes de cada pasta normalmente sugerem um mesmo tema. A pasta das oito da noite albergava muitos extractos de personagens a ir ao teatro ou ao cinema, pelo que o artista encheu os intervalos com cenas de elevado dramatismo. Na das dez da noite, vários segmentos de mulheres a beber sozinhas espoletou um tema de tristeza. Marclay começou a pensar nas horas como capítulos num romance. Isto parecia encaixar: ao construir um monumento ao drama de um único dia, estava a seguir o exemplo de Mrs. Dalloway e Ulysses. Marclay contou-me que o processo fê-lo sentir-se como um escritor. “Temos que nos sentar todas as manhãs em frente ao cabrão do computador e simplesmente escrever. E se só conseguir escrever três frases? Tudo bem.” Tal como as frases num romance se juntam para criar padrões e linhas de história, assim o fizeram os clipes de Marclay. Uma actriz cuja estrela renasceu em The Clock é Joan Crawford, que no vídeo se transforma numa sinistra criatura nocturna – surge quase uma dúzia de vezes, sempre intensamente conjurando planos, seja quando coloca as suas luvas (19h41), vasculha gavetas (21h03), interrompe o tiquetaque de um relógio (22h25), bebe um cocktail com um vestido de lantejoulas negras (23h48), se esconde por trás de persianas entreabertas (23h52) ou contempla um pêndulo (2h25).

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

Marclay descobriu que alguns pedaços de um filme colocados afastados entre si conseguiam criar efeitos mais incisivos que no filme original. Às 9h52, é dito a Jodie Foster, prestes a enfrentar os seus violadores, para esperar numa antecâmara; a crueldade deste atraso é registada às 11h16, quando outro plano mostra a actriz finalmente a entrar na sala do tribunal. Sete minutos antes do meio-dia, Charlie Sheen vai para uma entrevista na firma de Gordon Gekko, afirmando: “A vida resume-se a um punhado de momentos. Este é um desses momentos.” Às 5h23, Sheen empurra bruscamente uma amante ocasional para fora da cama e dirige-se para o computador para começar a negociar acções. Estes extremos exprimem toda a sua dissolução.

Simultaneamente, The Clock é também uma longa antinarrativa; tal como um romance grosseiro de Robbe-Grillet, brinca com o nosso impulso para criar uma história coerente. Marclay muitas vezes inclui várias cenas de um filme numa mesma hora, desafiando os espectadores a antecipar uma grande reviravolta no argumento – que nunca acontece. Nove segmentos mostram moradores em Elm Street preparando-se para ir dormir, mas Freddy Krueger não chega a aparecer. Às 23h57, uma jovem Vanessa Paradis propõe a um rapaz fazer sexo enquanto o vai despindo. À uma e dezanove da manhã, estão a dormir em camas separadas. Como é que conseguiram fazer isso? À meia-noite, Marclay colocou uma armadilha traiçoeira. Surge um grande edifício: um americano em Londres uiva como um lobisomem; Gary Oldman uiva a fazer de Sid Vicious. Orson Welles, em The Stranger [O Estrangeiro], cai de uma torre de relógio. Finalmente, surge uma imagem de um relógio que paira opressivamente por todo o vídeo, aparecendo dúzias de vezes: o Big Ben. É destruído numa explosão de fogo – um pedaço, do miserável V for Vendetta, transformado em ouro através da alquimia da remistura. Mas Marclay sabota este aparente clímax. No minuto seguinte, faz uma colagem com uma cena em Londres onde a filha de Rhett Butler acorda de um pesadelo. Enquanto Butler a conforta, a janela por trás deles enquadra o Big Ben, totalmente intacto. Marclay transformou o aparente ponto crucial de The Clock num mero sonho. “Quando isso acontece num filme sentimo-nos sempre enganados”, diz Marclay. “E este vídeo, de uma certa forma, é um longo engano.”

Em Setembro de 2010, Marclay regressou por pouco tempo a Nova Iorque. A White Cube tinha programado a première do vídeo para Outubro, mas havia um problema: centenas de transições resultavam visualmente, mas não a nível de som. Para ajudar nesta questão, chamou Quentin Chiappetta, um engenheiro de som de Brooklyn que tinha trabalhado com ele em Video Quartet. Reuniram-se num armazém em Williamsburg, onde trabalharam a banda sonora com o programa Pro Tools. Chiappetta contou que Marclay, enquanto DJ, desprezava as soluções óbvias. “Ele não gosta de fadeouts”, avançou Chiappetta. “Acha que fica fraco. É por causa do seu trabalho com gira-discos – a forma mais fácil de sair de uma situação difícil é descer o botão. Assim, fazer isso de uma forma mais inteligente, mais rítmica, tornou-se o nosso objectivo.”

Por vezes, como na estimulante partitura de Dimitri Tiomkin para High Noon, a banda sonora de um filme foi colocada por baixo de dezenas de clipes adjacentes, dando-lhes coerência. Noutros casos, uma música foi alterada na velocidade ou no tom, de forma a conjugar-se com a seguinte. De forma gradual, foi-se adicionando ruído a um clipe originalmente com som cristalino e envolvente, facilitando assim a transição para um quebradiço clipe em mono. Esta remistura tornou possível “não nos apercebermos de que os clipes estão a terminar, e assim sermos continuamente arrastados”, explica Chiappetta.

A colagem de sons acabou por ficar dez vezes mais intrincada do que a colagem visual. Algumas cenas receberam bandas sonoras novas, dando-lhes um efeito surpreendente. Às 11h33 existe uma cena fantasticamente tensa de Dana Andrews, em Laura, a vasculhar o apartamento de Clifton Webb em Nova Iorque; é virtualmente silenciosa, e cada passo parece um terramoto. O original não é de forma alguma um pedaço de suspense – é dominado pela “voice over” de Webb a proferir palavras duras. Por vezes Marclay criou novos efeitos sonoros. Um clipe, às 18h49, que mostra Kevin Spacey a fazer a barba, estava afectado por um áudio que distraía; para refazer a banda sonora, Marclay entrou numa cabina de som e carregou no botão de uma lata de creme de barbear ao ritmo das imagens.

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Estreado em Londres, na galeria White Cube, em 2010, The Clock valeria ao seu autor, no ano a seguir, o Leão de Ouro de melhor artista na Bienal de Veneza Marco Secchi/corbis

À medida que a data da estreia se aproximava, mantinham-se ainda alguns buracos. “Havia um ponto em que estávamos, tipo ‘Como é que vamos fazer com as três e as cinco da manhã?’”, lembra Marclay. “Eram horas difíceis. A mais difícil era a das cinco.” Smith e a sua equipa não conseguiam descobrir clipes com relógios a mostrar quinze dos minutos dessa hora. Marclay surgiu com uma solução. Quanto mais tarde os espectadores se mantivessem a pé para assistir a The Clock, raciocinou, mais “intoxicados” ficariam. “Temos que imaginar que, se nos mantemos acordados a ver e são cinco da manhã, já estaremos com um estado de espírito bastante particular. Decidi brincar com isso.” Completou a parte das piores horas da madrugada com mais de uma dúzia de cenas de sonhos, incluindo o pesadelo de Salvador Dalí para Spellbound [A Casa Encantada]. Resultou bem, porque muitos dos segmentos interpolados mostravam pessoas agitadas às voltas nas suas camas. No final, foram recolhidos mais de 10 mil clipes. A primeira projecção teve lugar na austera galeria da White Cube no Mason’s Yard. Jopling e a sua equipa disseram a Marclay que ele havia criado uma obra-prima. É verdade que era divertido tentar identificar todas as cenas que se sucediam. Mas The Clock não era um jogo. Ao apresentar um dia da vida como uma incessante marcha de narrativas ficcionadas, tinha confirmado a teoria de Joan Didion, segundo a qual “contamos a nós próprios histórias para conseguirmos viver”, ao mesmo tempo que nos lembram de que algum dia vamos todos morrer.

“Acabou o tempo”, diz-me Marclay, dando-me um toque no ombro. “Estou pronto para ir jantar fora.”

Eram 19h29. No ecrã, Nicole Kidman, numa casa de banho em Manhattan, também estava pronta para sair, perguntando a um distraído Tom Cruise se o cabelo dela estava bonito. Fora do ecrã, estávamos numa galeria com três andares, escurecida por cortinas de veludo negro, em Yokohama, Japão. Estávamos em Agosto, e a cidade, um satélite de Tóquio, celebrava a inauguração da sua Trienalle, exposição de arte contemporânea. The Clock estava a ser exibido num armazém na marginal; era a estrela da exposição, a que tinha sido dado o amistoso nome de Our Magic Hour [A Nossa Hora Mágica]. Várias das obras em exibição eram óbvios tributos a Marclay, como era o caso, por exemplo, do vídeo de um artista japonês que usava um prato de gira-discos como uma roda de oleiro.

Fiquei contente por ter sido interrompido. O meu corpo tinha estado ligado em simbiose a The Clock durante cerca de três horas, e o meu estômago estava a dar horas desde que as cenas de comida tinham começado a proliferar, por volta das cinco da tarde. Às 19h25, não muito depois de a família de Juno começar a comer as suas batatas assadas, uma matrona francesa aparece a cortar vegetais, o seu ritmo de metrónomo evocando o sonoro tiquetaque de um relógio. Marclay, que tinha chegado de avião de Londres no dia anterior, sofria de jet-lag e desorientação: enquanto me guiava até à instalação, colocou-se à frente de um grande plano de um relógio de uma escola primária, que indicava 16h29, e perguntou-me que horas eram. A sua exaustão era uma feliz consequência do sucesso. The Clock tornou-se tão icónico como o floral Puppy [Cachorro] de Jeff Koons ou o tubarão de Damien Hirst – e Marclay ascendera desde o respeito do meio artístico até à fama internacional. Apesar de The Clock ser a consequência lógica de décadas de evolução na remistura, destacou-se como um chocante salto a nível de ambição, como se um esforçado escritor de contos subitamente publicasse um romance tolstoiano.

The Clock embarcou numa digressão mundial, e conseguir vê-lo tornou-se um desporto de competição. Em Londres, espectadores fizeram fila e acamparam durante a noite para poderem assistir. Em Los Angeles, um fanático de cinema “engoliu” a obra de uma vez só e, ao que parece, sem ir uma única vez à casa de banho. Em Nova Iorque, foi exibido na Paula Cooper Gallery, e quando Sofia Coppola o viu – Lost in Translation [O Amor É um Lugar Estranho] é imortalizado às 4h20, quando Bill Murray é incomodado por fax que lhe enviaram – disse aos responsáveis da galeria que se sentia honrada por Marclay. Roberta Smith, do “New York Times”, proclamou The Clock como “a obra definitiva da arte de apropriação”. Rosalind E. Krauss, a eminente historiadora de arte, celebrou a transformação que Marclay efectuou, “do tempo da bobina de filme para o verdadeiro tempo da espera”. Os elogios foram tão generalizados que incitaram uma reacção negativa por parte dos hipsters: posters ao longo da Twenty-first Street anunciavam: “Aviso: os 15 minutos de fama de Christian Marclay expiram em 24 horas.”

No Verão, The Clock foi apresentado na Bienal de Veneza, e Marclay ganhou o respectivo prémio para Melhor Artista. Era um espaço maravilhoso, afirmou, porque “a cada hora certa ouve-se todos os sinos das igrejas vizinhas a tocar – foi tão bom ouvir o mundo exterior a intrometer-se”. Houve também paragens em Seul, Moscovo, Paris, Boston e Jerusalém, e a lista de espera tem crescido. É demasiado extenso para ser apresentado em DVD. A obra é um programa de computador – codificado por Mick Grierson, professor no Goldsmiths College, em Londres – que, quando iniciado, se dirige imediatamente para o clipe que ostenta o tempo real em que se está, acertado ao microssegundo. O sistema, que arquiva os canais de imagem e de som separadamente, exige uma preparação prévia, pelo que Marclay e um técnico da White Cube, Scott Martin, estiveram presentes em todas as cidades onde a peça tem sido exibida.

Em Yokohama, estávamos sentados no mesmo tipo de sofá cor de marfim do IKEA que Marclay tinha escolhido para a apresentação de The Clock em Londres e Nova Iorque. Scott Martin, um alto e desengonçado gentleman inglês, tinha vindo com Marclay e brincou: “Ele devia ter um acordo de patrocínio.” Marclay tinha abordado a questão dos assentos com a habitual profundidade e seriedade. Os sofás, dispostos numa grelha ordenada, permitem que os espectadores se sentem confortavelmente durante horas, e também sair sem forçar os outros a levantar-se, como acontece, por exemplo, no cinema. Mas no Japão os visitantes insistiam em ficar de pé, e na altura em que lá estive os assistentes acotovelavam-se na parte de trás da sala, como os criados de Downton Abbey. Apesar da lembrança de Marclay acerca do jantar, não saímos logo. Tal como todos os presentes na galeria, ele ficara com um brilho de zombie no olhar assim que olhara para The Clock, e durante um bocado olhámos juntos. O tema, de uma saída nocturna, era elaborado: primeiro Daniel Craig e Eva Green estão numa casa de banho, a preparar-se para ir jogar no Casino Royale. Perguntei a Marclay se ele conseguia identificar os vários pedaços. Ou não conseguiu, ou respondeu em termos extremamente vagos. “Aquilo é francês”, disse a determinada altura, enquanto Alain Delon falava em francês. Mais tarde, pedi a Marclay para me dizer o nome do último filme que tinha ido ver. Teve dificuldades para avançar com um título, e, quando por fim o conseguiu, era de uma película já quase com um ano: O Discurso do Rei. “Na realidade não sei nada sobre cinema”, explicou. “É terrível.” Como Marclay viaja frequentemente para acompanhar as exposições, por vezes apanha alguns filmes nos quartos de hotel, mas raramente os vê na totalidade. Mesmo quando está descansar, é um “colador”. “Não me importo nada de assistir a uma data de fragmentos de um filme”, diz com um encolher de ombros.

Este afastamento de Marclay face ao seu material inicial é inquietante – a definitiva homenagem a Hollywood foi concebida por alguém que raramente sentiu as pipocas por baixo dos sapatos. Mas a sua falta de especialização deu-lhe uma distância estética que falta aos fãs obcecados. “É o mesmo que acontece com a música”, observa. “O facto de eu saber muito pouco acerca de música, mas mesmo assim fazer música, é muito libertador.” A sua primeira oportunidade, na faculdade de Belas-Artes – no Massachusetts College of Art, em Boston –, surgiu quando encontrou na rua um disco de música para crianças. O disco estava coberto de riscos e marcas de pneus, e Marclay ouviu-o num gira-discos na sua faculdade. Seguiu-se uma versão alucinada do tema principal de “Batman”, e a ideia de distorcer música através de distorção física tomou forma.

Isso passou-se em 1977. Por que é que não tocou o disco no seu quarto? “Eu não tinha um gira-discos”, explica. “Nunca sequer tinha ouvido muita música. Estive num colégio interno masculino na Suíça, e não nos deixavam ter um.” Durante o ensino secundário, tentou começar com aulas de piano, mas disseram-lhe que era demasiado velho, e decidiu manter a sua iliteracia musical. Quando pela primeira vez montou performances musicais ao vivo, com um colega de Boston, exibiu a sua falta de estudos musicais, criando ritmos através do corte de madeira e do esmagamento de vidros; pelo menos uma vez, cortou-se e sangrou em palco. Esta ingenuidade sábia atraiu a atenção de John Zorn, dos Sonic Youth e de outros especialistas na produção de sons e ruídos da cena punk, que o adoptaram como um dos seus. (Um granuloso vídeo disponível no YouTube mostra Thurston Moore, guitarrista dos Sonic Youth, a “rebentar” juntamente com Marclay, que actua com a concentração gélida de um afinador de pianos.)

No ecrã, um sintetizador saltitão adicionava vivacidade a um filme de série B dos anos 80. Falámos acerca do intenso sentido musical de The Clock. Ele e Martin tinham-me aconselhado a experimentar ficar durante um bocado em frente ao vídeo mas de olhos fechado, e foi o que fiz. Pareceu-me uma remistura bem conseguida: o tempo é referido no diálogo de poucos em poucos minutos, e aprecia-se mais intensamente a forma como, às 18h45, uma batida de New Wave penetra sub-repticiamente no clamor de uma cena de festa de Breakfast at Tiffany’s [Boneca de Luxo], antecipando o segmento seguinte – uma cena numa galeria de arte de Basquiat. Marclay vestia um blusão azul com capuz da Gap e sapatilhas Vans pretas – o conjunto não muito extravagante de um DJ de meia-idade. A sua experiência por trás dos pratos de gira-discos é essencial para The Clock: apresenta um timing impecável, fluindo do frenético para o majestoso, com alguns clipes alongando-se para além de um minuto. “Num videoclipe musical, a imagem segue o ritmo do som e ficamos com uma quantidade daqueles cortes muito abruptos”, avança Marclay. “Estou farto disso. Foi algo criado para nos agarrar a atenção, mas já não o consegue.” O objectivo de Marclay era “fazer uma colagem com continuidade” [em inglês, “continuity”].

Na realidade, ele disse “continue-tee “ – o seu inglês é impecável, excepto em alguma ocasional má enunciação. Apesar de ter nascido em San Rafael, Califórnia, em 1955, a sua mãe, norte-americana, em breve concordou em se mudar para um subúrbio de Genebra, onde o seu pai tinha um negócio de dentaduras postiças. A família era uma confusão linguística. Os seus pais conheceram-se no Peru – o seu pai estava a viajar, e a sua mãe estava a preparar um mestrado em têxteis pré-incas – e o espanhol era a única língua que partilhavam. A sua mãe, que acabou por ficar como dona de casa, falava com Christian em inglês, e ela demorou algum tempo até aprender o francês. Marclay atribui o seu interesse pela arte ao facto de ele “não confiar muito na linguagem”. Recorda o artista: “Muitas vezes a minha mãe não me conseguia ajudar nos meus trabalhos de casa porque ela não era fluente em inglês. Eu apoiava-me mais nas imagens.” O instinto de “colador” surgiu cedo: lembra-se de uma professora do ensino primário que “encontrou uns grandes catálogos com amostras de papel de parede, e podíamos desenhar nelas. Eu adorava aquilo”. Ela também o deixava brincar com um mimeógrafo.

Saímos da sala de exposição e parámos em frente a uma escultura de um hipopótamo feita em lama. Marclay franziu as sobrancelhas e continuou a andar. Ele é franco no tocante à sua opinião sobre os seus contemporâneos. A carreira de Damien Hirst não lhe despertou interesse, explica, porque Marclay é atraído pelas ideias, e não por “um culto da personalidade”. Quando mencionei que admirava muito um trepidante vídeo de Bill Viola que acompanhava uma representação de Tristão e Isolda em Nova Iorque, respondeu-me: “Não gosto muito das coisas dele.” E avançou ainda que é céptico quanto à tendência para embelezar os concertos com materiais visuais: “É um bocado condescendente tornar algo teatral mais fácil de digerir só porque existe uma imagem.” Quando lhe pedi para dizer o nome de alguns artistas contemporâneos de que gosta, referiu Gabriel Orozco, e acrescentou: “Não gosto de todas as obras de um determinado artista.” Os elogios incondicionais estão reservados para precursores canónicos: Duchamp, Bruce Nauman, John Cage. Embora tenha sido um inovador em muitos aspectos, Marclay não apresenta o impulso revolucionário; quer apenas ser parte de uma ilustre tradição.

Saímos da galeria de exposições e esperámos por um táxi. “Repara como os carros daqui são tão antropomórficos”, disse a certa altura. “Conseguimos logo ver que estamos no Japão, simplesmente olhando para o movimento ordeiro do trânsito.” Entrámos num táxi branco que tinha no painel de instrumentos um grande relógio negro em forma de cara: 20h04. Dado que estava agora tão escuro no exterior como dentro da galeria, senti uma inquietante porosidade entre o cinematográfico e o real. Marclay avisou-me de que, durante algum tempo, eu iria reparar em relógios com uma frequência aflitiva. Era verdade – durante alguns dias senti-me perseguido pelo tempo.

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

O restaurante situava-se num hotel clinicamente limpo perto do centro de congressos da cidade. Para lá chegar, tivemos que percorrer a pé uma vastidão de betão com vista para o mais alto arranha-céus do Japão, mas Marclay nem reparou no “monumento”. No dia seguinte, na mesma praça, parou abruptamente e afirmou que conseguia ouvir cigarras. Estes insectos fornecem um som agudo e que arranha a muitas ruas do Japão que apresentam filas de árvores nos seus passeios, mas havia qualquer coisa errada: não havia ali quase nenhuma árvore. Marclay suspeitou que estava a ser tocada uma gravação – um esquema artificial para fazer com que o espaço pareça menos artificial. Ele tende a ignorar as atracções mais óbvias e a notar o que é marginal. Após uma conferência de imprensa realizada no dia da inauguração da exposição, o seu único comentário foi que tinha gostado do som do restolhar colectivo de um centena de jornalistas japoneses a abrir os seu “kits” de material de imprensa.

O restaurante tinha uma vista panorâmica do porto. Sentámo-nos ao pé da janela, e pouco depois de termos feito o nosso pedido a cara de Marclay foi iluminada por um raio de néon com as cores do arco-íris. Na marginal do porto de Yokohama existe uma roda gigante que é também apresentada como o maior relógio do Mundo. Os raios da Cosmo Clock 21 brilham em tons de verde à noite, e quando completa uma volta toda a roda gigante explode em cores. A hora era 21h00, e os números digitais no centro da roda gigante assomavam directamente sobre a hirsuta cabeça de Marclay. Parecia uma imagem de um filme de Michael Bay – um jantar sem nada de anormal, mesmo antes de uma bomba-relógio fazer rebentar a janela em milhares de estilhaços de imagens geradas por computador.

O relógio de Yokohama é um espectáculo público acarinhado. Então, por que razão The Clock é mantido escondido dentro de pequenas salas de galerias de arte? “Quando comecei este projecto, pensei que iria ser uma peça de arte pública”, explica Marclay. “Pensei: ‘Que coisa maravilhosa, estar numa estação de caminhos-de-ferro à espera do comboio e poder assistir a um filme. Informar-me-ia de que horas eram, e ao mesmo tempo entretinha-me. Mas percebi que seria impossível – existe a questão da iluminação, a questão do som, tem que se conseguir ouvir os avisos do sistema sonoro. E a estação Grand Central [Nova Iorque], por exemplo, fecha durante algumas horas, de madrugada, quando limpam aquele espaço todo. E depois surgem algumas imagens com nudez e palavrões. Como é que se pode mostrar isso na Grand Central? E depois começamos a censurar-nos a nós mesmos, e isso é algo que não faço.” Mas existe uma razão mais forte: o vídeo precisava de nos agarrar tiranicamente numa galeria escura. Mostrado no meio de outras distrações, tornava-se apenas num objecto de decoração – apenas mais um relógio.

Craig Burnett, da White Cube, dissera que Marclay era “muito querido, educado e gentil”, e que as únicas vezes em que o vê zangado ou desanimado "é quando as pessoas não levam o seu trabalho a sério”. Marclay admite que se tem enfurecido com muitos conservadores de museus que não percebem as subtilezas da sua obra. Eles queriam uma roda gigante, não The Clock. De acordo com o The Arts Newspaper, o Los Angeles County Museum of Art [LACMA] tinha proposto projectar The Clock numa parede do exterior. Diz Marclay dessa ideia: “Sabes, é do género ‘Vamos mostrar a todo a gente isto que temos aqui’. Mas o que é que acontece durante o dia? Vai desaparecer. E então o canal do áudio?” (O LACMA nega ter sugerido uma projecção no exterior.) As negociações com o Museu de Belas-Artes de Boston foram ainda mais frustrantes. Apesar de o museu já ter anunciado que tencionava projectar The Clock, os seus curadores ainda não tinham apresentado a Marclay uma localização apropriada – ele havia rejeitado propostas para o mostrar num átrio ensolarado ou num auditório com painéis de madeira nas paredes. E os advogados da Tate queriam que ele assinasse um contrato que autorizaria que os curadores apresentassem The Clock na Turbine Hall, que pode albergar grandes multidões mas, segundo Marclay, tem “a pior acústica da cidade de Londres”.

Mesmo correndo o risco de parecer complicado, Marclay queria que o vídeo fosse exibido exactamente como ele tinha planeado, incluindo com os sofás do IKEA. The Clock é um vídeo com duração de 24 horas e com um manual de instruções de 24 páginas. “Museus com pergaminhos e responsabilidades estão a comportar-se como miúdos gananciosos”, disse a determinada altura o artista. “Há falta de conhecimentos e de cultura. Só pensam em quantas pessoas conseguem fazer entrar pela porta. A maneira de o conservar, a maneira de lhe permitir a melhor apresentação possível – isso não lhes interessa nada. Só querem um sucesso.” Claro que estar no centro de uma luta de ofertas a nível mundial é sempre lisonjeiro – o Pompidou e o Museu de Israel estiveram entre os museus que concorriam por uma das seis cópias que a White Cube fez do programa de computador. The Clock certamente tornou Marclay mais rico: cinco das cópias, destinadas a museus, foram sendo vendidas por centenas de milhares de dólares, e a sexta foi vendida a Steven A. Cohen, o gestor de fundos de investimento do Connecticut, por uma verba que não foi tornada pública. (Cohen começou a mostrar a obra num monitor de computador do seu escritório, como se fosse um elegante fundo de ambiente de trabalho.)

Mas Marclay estava a ressentir-se com o sucesso, como um rocker da área independente que começa a recusar-se a tocar o seu êxito que chegou a número um na tabela de vendas. Na festa de inauguração da exposição, realizada na tarde do dia seguinte numa sala de conferências do tamanho de um hangar de aeroporto, foi bem-educado com as pessoas vindas de Nova Iorque, Los Angeles e Tóquio que lhe diziam que tinham adorado o vídeo, mas ficou mesmo radiante quando se aproximavam pessoas que gostavam das suas obras mais antigas. Um jovem artista que estava representado na Trienalle, Lyota Yagi, disse-lhe: “És o meu ídolo.” A cultura de DJ experimentais floresce no Japão, e Marclay, que editou várias gravações de trabalhos com gira-discos, é considerado uma figura fundamental. Yagi contou a Marclay que tinha recentemente feito vários discos de gelo. Um vídeo na exposição mostrava-o a tocá-los até que a fricção da agulha os reduzia a pedacinhos de gelo e água. O gelo exagerava o atributo favorito de Marclay num LP: os riscos e estalos que confirmavam a sua fragilidade. Perguntou a Yagi que música soava melhor quando congelada. Os “Nocturnos” de Chopin, foi a resposta.

E surgiu então a inevitável pergunta: “Qual vai ser o teu próximo vídeo, Christian?”

Após três monásticos anos a fazer colagem digital, Marclay estava desejoso de regressar à arte analógica. “Não quero que as pessoas pensem que sou apenas um videoartista – o tipo que fez The Clock”, disse-me ele. “Faço tantas coisas diferentes.”

E assim foi às compras. Marclay tinha iniciado dois projectos que envolviam a manipulação de formas de arte japonesa. Para uma apresentação individual na galeria Koyanagi, em Tóquio, fez rolos de pendurar japoneses: pinturas, rodeadas por bermas de pano, que são desenroladas para as cerimónias do chá. A sua provocação consistia em elaborar os rolos com imagens e tecidos agressivamente agitadores; as pinturas, tradicionalmente serenas cenas da Natureza, eram trocadas por colagens de imagens de “scanner” mostrando explosões e outras devastações, recortadas à mão de pedaços de folhas arrancadas de livros de banda desenhada. Aumentadas digitalmente, as fibras de madeira do papel rasgado parecem entranhas expostas, ligando “a violência da banda desenhada e o rasgar do papel”. Os tecidos das bermas seriam como impressões de néon e arabescos da Pucci. Esta paleta áspera seria, talvez, uma evocação mais honesta do Japão moderno.

Sho Kuwajima, distinto responsável da galeria Koyanagi, acompanhou Marclay numa ronda pelos grandes armazéns de têxteis de Yokohama – silenciosos refúgios femininos em madeira clara. Numa das lojas, Marclay adquiriu tecido verde-maçã cujos círculos irregulares lhe faziam lembrar os pontos Benday dos livros de banda desenhada. Noutro estabelecimento, chamou-me e disse: “Isto é muito interessante! Quase parece camuflagem em caramelo.” Ele pensava que este tecido podia dar uma bonita bordadura.

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

A seguir, foram em busca de “manga”. Os livros de banda desenhada japoneses são famosos pelas suas audaciosas imagens e mancha gráfica, mas Marclay também os considera objectos musicais, porque a acção é frequentemente sublinhada com onomatopeias explosivas do género “WHKOOM!”. Em 2010, para uma apresentação a solo no Whitney Museum, em Nova Iorque, alinhou sons de “manga” num rolo de 18 metros de comprimento, criando uma partitura visual para um vocalista acompanhar em improviso. Por esta altura já tinha pedido a uma editora de Tóquio, a Akaaka, para esta imprimir um livro de banda desenhada que seria composto inteiramente por pedaços de outros “manga”. O livro, contou-me, iria ser outro acto “abusivo, destrutivo”, uma arrogante destilação de toda uma forma de arte. Ele já havia feito algumas colagens de “manga”, e achou-as revigorantes; comparadas com os instáveis constrangimentos de The Clock, explicou-me, isto era “uma maneira de pensar muito diferente – é muito livre e desprendida”.

Vi as colagens preparatórias e, considerando que tinham sido feitas com papéis colados, eram impressionantemente cinéticas. Uma combinava fragmentos de ondas do mar e explosões de bombas num vórtice colossal; em comparação, a famosa pintura de um tsunami por Hokusai parece um pequeno chapinhar na água da banheira. Os cortes de tesoura de Marclay eram mais grosseiros, dando-nos a perfeita consciência de estarmos a olhar ao mesmo tempo para muitas imagens sobrepostas. Destacou este efeito com uma pilha absurda de efeitos sonoros: uma guerrilheira aos saltos, com uma arma na mão, rodeada por “FWAP”, “SHOOM”, “RAAA” e outras 14 palavras sonoras, fazendo parecer que muitos actos violentos estavam a ocorrer simultaneamente. O resultado era quase antiquado: cubismo de banda desenhada. As colagens eram de pequeno formato, e acentuadamente anti-épicas. Era como se Richard Serra, após terminar as suas “Elipses Torcidas”, decidisse fazer um candeeiro torcido. Marclay queria fazer três centenas daquelas colagens; tal como em “The Clock”, o projecto iria obrigar a muito trabalho duro. Uma “manga” de edição periódica muitas vezes contém várias histórias longas, cada uma num papel com um diferente tom de pastel, e o seu projecto iria imitar esse esquema, com fólios para os vários agrupamentos de temas – desastres naturais, digamos, ou erotismo. Marclay queria que o livro se parecesse tanto com uma “manga” verdadeira que um empregado de livraria o classificasse erroneamente e “colocá-lo-ia na secção da banda desenhada, e não na secção de arte”.

Parámos numa manhosa loja de conveniência que tinha uma extensa prateleira com “manga”, muita dela pornográfica. Vasculhando por entre os livros, Marclay concentrou-se nas onomatopeias sexuais. “Os japoneses são tão estranhamente específicos”, disse-me, rindo à socapa. Kuwajima, a quem foi pedido que traduzisse, obedeceu de forma totalmente profissional: “Isso significa ‘empurra até ao fundo’”, explica face a uns caracteres “kanji”.

Marclay apontou para um grande plano de seios. “Esses ‘kanji’ soam como ‘wuhrr’”, disse Kuwajima. “Significa ‘abana rapidamente, muito rapidamente’.” Marclay acabou por comprar uma pilha de livros. “Isto é tudo coisas onde utilizar as minhas tesouras.” Pela primeira vez desde há bastante tempo, tinha material novo para ameaçar.

Em Setembro, Marclay regressou a Londres, lutando para conseguir progressos nos livros de “manga”. O seu plano inicial era completar uma colagem por dia, todas as manhãs, em sua casa; a esse ritmo, conseguiria terminar dentro de um ano. Mas pedaços de “manga” estavam a espalhar-se pelo seu pequeno apartamento com uma maldade entrópica, e apesar de ele achar útil viver com as suas peças de “puzzle” - “Surgem-nos ideias quando não estamos sequer a pensar naquilo” –, a situação criou uma confusão insuportável. Em Clerkenwell, Marclay colocou uma segunda secretária, que agora está reservada para as “manga”. Quando o visitei aí, a mesa estava coberta com estilhaços visuais – ao aldo de um marcador fluorescente amarelo estava uma pilha de pés desmembrados.

A outra secretária tinha sido empurrada contra uma lareira desactivada em cuja fornalha tinha sido colocada uma cópia de Film Script 3, de Yoko Ono: “Peça aos espectadores para cortarem a parte da imagem no ecrã de que não gostam. Forneça tesouras.” Essa secretária, explicou-me, um pouco envergonhado, era dedicada apenas aos novos projectos de videocolagens. Paul Anton Smith tinha continuado a pôr de lado filmes para ele, e Marclay continuava a ser atraído de volta ao seu Mac. “Desde que regressei do Japão, fiz talvez aí umas duas colagens de ‘manga’”, confessou. “Nas colagens, tenho que estar com um certo estado de espírito, e preciso de ter as coisas espalhadas, para me estimularem visualmente. Mas, com o computador, basta dar um clique nestas coisas e elas aparecem imediatamente aqui.”

Marclay explicou-me que nessa altura estava a recolher imagens de actores a passar por portas. Marclay tinha imaginado transformar a casa do cinema numa sucessão interminável de quartos e salas. As portas estariam repetidamente a abrir e a fechar, como numa comédia de costumes, mas não haveria saída desse mundo de interiores. Tal como em “The Clock”, o conceito ere simples, mas ele já estava a ver como poderia acrescentar níveis de dramatismo. O trabalho seria claustrofóbico, arrastando o espectador através de um labirinto cinematográfico, mas também capturaria a alegria da descoberta. “Existe sempre um mistério por trás de cada porta”, conta Marclay. “É um momento tão bonito. Nunca se sabe onde aquilo vai levar. Abrir uma porta é a metáfora perfeita para entrar num novo espaço – numa nova vida.”

A ideia de “dobradiça” de Marclay parecia especialmente adequada neste caso. Estabeleceu uma regra: apenas faria uma dobradiça para uma nova cena quando alguém no ecrã passasse por uma porta. “É claro que isso torna tudo mais difícil”, reconhece. Mas essa estratégia iria criar um suspense irritante, pois os espectadores teriam que esperar que um actor os libertasse de um quarto ou de uma sala.

Criar uma transição imperceptível de portas estava a revelar-se exasperadamente difícil. Os corpos de ambos os lados da porta teriam que se mover com aproximadamente a mesma velocidade – de outra forma a ilusão seria desfeita. A porta teria que se abrir da mesma maneira em ambos os planos, e o ângulo da câmara teria que ser semelhante. “Existem tantas coisas diferentes que podem fazer com que a edição num determinado ponto não funcione”, explicou Marclay.

Mostrou-me alguns “rascunhos”. Colocando os seus óculos escuros, carregou o Final Cut Pro. Clipes de filmes estavam espalhados pelo monitor, como notas numa partitura. Marclay mostrou-me várias maneiras que ele tinha tentado para conseguir seguir uma cena de Klaus Kinski encurralado num corredor e a saltar contra uma porta para tentar derrubá-la. Uma das possibilidades era Naomi Watts, irrompendo por uma outra porta em camisa de noite, e em pânico. Funcionava bastante bem, mas não era perfeito – os pés dela, ao contrário dos de Kinski, estavam bem plantados no chão. Agora que as pessoas já entendiam o seu método, confidenciou Marclay, “vão começar a procurar erros – as transições que não estejam perfeitas”. O melhor plano que encontrou para fazer a correspondência foi um de Adam Sandler, atirando-se pelo ar através da porta de um salão enquanto corria para ir beijar a sua nova namorada, Emily Watson. “Funciona bem.” A agressividade do detective tinha sido transformada numa diferente forma de energia masculina – exibicionismo romântico.

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Christian Marclay, detail of The Clock, 2010 24 hours, looped © Christian Marclay. Courtesy Paula Cooper Gallery, New York and White Cube, London. Photo: Todd-White Photography

O processo de colar segmentos no Final Cut Pro, explica Marclay, tinha sugerido uma inovação estrutural audaciosa. Para encontrar as melhores correspondências, fez dúzias de “dobradiças” com os mesmos clipes. Um dia, percebeu que podia explorar esta abundância. O vídeo iria ser um sinistro mecanismo de repetição. O espectador seria ocasionalmente puxado de novo para certas salas e quartos, e estes clipes repetidos durariam apenas o tempo estritamente necessário para atormentar o espectador. “Espera aí, eu não vi já isto?” Depois a porta abria-se para, nas palavras de Marclay, “um mundo diferente daquele que esperávamos”. Marclay chamou a este efeito “loops com variações” – e esperava que fosse deliciosamente desorientador. Esta abordagem imitaria a experiência física de estar perdido num labirinto, e criaria uma nova experiência de visionamento relativamente à de um vídeo linear. “The Clock tem uma estrutura a que tive que me adaptar. Com o vídeo das portas, estou a criar a minha própria estrutura.”

Eram cinco e meia da tarde. “Está na hora de irmos embora”, comunicou Marclay. A White Cube estava a organizar uma festa para celebrar a abertura de uma enorme nova galeria – um armazém de papel reconvertido em Bermondsey, perto da Tate Modern. No nosso caminho para lá, fomos buscar a sua companheira, Lydia Yee, senhora de uma inteligência inquebrantável. O seu dia tinha sido alucinante – estava a preparar uma exposição sobre a Bauhaus -, mas ela parecia muito elegante, no seu smoking novinho em folha. Apesar de estarem juntos desde 1991, ela e Marclay apenas tinham casado algumas semanas antes. O evento foi discreto: dois amigos acompanharam-nos ao Registo Civil de Manhattan. Eu apenas tinha sabido do enlace porque Marclay tinha adiado uma visita que havíamos planeado ao seu estúdio em Brooklyn com um “Na verdade não posso, porque vou-me casar”. Em vez de alianças, Marclay e Lydia trocaram pulseiras de amizade cor de laranja que em breve se desintegrariam. A confusão à porta da festa estava a alcançar proporções bieberianas, com seguranças a gritar a jovens com maquilhagem pesada e longas barbas. Jopling tinha transformado o armazém de papel num templo de frieza ostensiva: paredes brancas, chão de betão envernizado. Uma parede ostentava um “gabinete médico” de nove metros de comprimento, de Damien Hirst – prateleiras espelhadas repletas de produtos farmacêuticos – e Marclay perguntou a um dos responsáveis da White Cube quanto valia aquilo. Quando lhe disseram, respondeu: “Com esse dinheiro comprava um quadro de um Antigo Mestre.”

Muitos curadores estavam na festa, e Marclay foi assediado com pedidos para exibir The Clock. Momentos após alguém da Lituânia se ter promovido junto a ele, Sherri Geldin, do Wexner Center, em Columbus, estado do Ohio, aproximou-se.

“Os museus que o compram são os primeiros a apresentá-lo”, disse-lhe Marclay, em jeito de desculpa. “Existe uma lista de espera.”

“Mas talvez o LACMA nos empreste a cópia deles”, respondeu Sherri Geldin. “E devias lembrar-te de que já nos fizeste uma peça de relógio.” Num andaime decorativo colocado no exterior do Wexner, ele afixara mecanismos de sinos que eram activados uma vez por hora, transformando o andaime num imenso emissor de sons.

“Oh, é verdade”, lembrou-se Marclay.

Ela afastou-se, mas dois minutos depois estava de volta. “Acabei de confirmar”, disse. “Foi em 1990, e o título era… The Clock. Por isso, tens que terminar o que começaste.”

“Já fiz The Clock duas vezes?”, respondeu Marclay a rir. “Bem, isso prova que sou demasiado suíço.”

Deixámos Bermondsey e dirigimo-nos para uma after party na casa de Jopling, no West End. No táxi, Marclay confidenciou-me: “Não há nada meu nas paredes de nenhuma das White Cube neste momento, porque o meu portefólio é mesmo reduzido. Não inundo o mercado.”

Lydia interveio: “Para além disso, as tuas obras tendem a não regressar ao mercado. Os museus compram-nas, mas os colecionadores privados ficam com elas.”

Falámos sobre um jovem artista, Jacob Kassay, pintor de 27 anos que se especializou em telas prateadas, uma das quais estava exposta em Bermondsey. “Nem sempre é assim tão bom ser uma sensação de um dia para o outro”, opina Marclay.

“Sim, tu és mais do género da tartaruga”, brincou Lydia. “’Devagar se vai ao longe’.”

Marclay sorriu. “Vais perceber que a minha mulher gosta de me insultar.”

A carinhosa discussão continuou. “Ela acha que eu me visto mal”, queixou-se Marclay a determinado ponto.

“Já te vestes melhor do que quando te conheci”, opinou Lydia.

Perguntei-lhe quando é que ela tinha visto pela primeira vez The Clock. Ela respondeu em direcção a Marclay: “Mostraste-me quando ainda só tinhas uns fragmentos – era da uma até à uma e dez, creio eu. Estavas nervoso.”

“Normalmente não a deixo entrar no estúdio”, avança Marclay. “Ela é demasiado inteligente. Eu nunca conseguiria fazer nada.”

Jay Jopling vive numa mansão que pertencia aos duques de Stanhope. A sala de jantar é um exemplo acabado da decadência do boom do mercado de arte: nos painéis dos lambris foram colocadas telas em pastel, de Damien Hirst, que se apresentam cobertas com os cadáveres iridescentes de borboletas.

Hirst, meticulosamente penteado e vestindo uma modesta T-shirt dos Motorhead, estava na sala de jantar, no meio de travessas com cocktails de ervas e bolinhos violetas. “Agora vamos ter que fazer obras grandes como a merda para aquela porra de galeria enorme!”

“Vamos a ver”, retrucou Marclay.

Subimos uma escada curva e entrámos na biblioteca de Jopling. No meio das estantes com livros espreitava uma pequena televisão e, em cima dela, num volume de som que não se conseguia ouvir por cima do barulho da festa, uma cópia desbotada de The Clock com barras negras na parte superior e inferior da imagem. Marclay estremeceu. “Não estou nada contente com isto”, resmungou. Curadores presentes na festa poderiam vê-la, torpedeando a sua afirmação de que The Clock nunca era passado em condições abaixo de excelentes. Marclay não falou disto com o seu patrono, mas ele e Lydia rapidamente se foram embora para casa.

Duas noites depois, fomos a uma festa dada na galeria Whitechapel, em honra do artista polaco Wilhelm Sasnal. Num nicho, Marclay reparou numa pequena exposição dedicada a Mark Rothko. Marclay apontou para uma moldura que albergava um aviso que os representantes de Rothko haviam enviado à galeria: “As paredes devem ficar consideravelmente mais esbranquiçadas com cor de umbra e aquecidas com um pouco de vermelho. Se as paredes ficarem demasiado brancas, estarão sempre a lutar com os quadros, que se tornam mais esverdeados…” Marclay fez uma careta para Lydia. “Sinto que me vingaram.” Ela deu-lhe pequeno toque na mão.

Marclay parecia decidido a não se tornar em apenas mais um produto da White Cube. Nos meses seguintes, continuou a avançar com o vídeo das portas, mas também regressou às raízes. Terminou os rolos japoneses – ficaram com uma aparência extraordinária, corres berrantes envolvidas por simetrias rígidas. Para o Palais de Tokyo, em Paris, começou a elaborar sete janelas com impressão de violentas onomatopeias de livros de banda desenhada; faziam lembrar vitrais a serem estilhaçados. E, nos finais de Novembro, foi até Nova Iorque para uma performance de gira-discos com Otomo Yoshihide, um artista de som de Tóquio. O concerto teve lugar na Sociedade do Japão, perto do edifício das Nações Unidas. Cada artista tocou dois fonógrafos, e os seus sons combinados por vezes revelaram-se tão colossais que algumas pessoas se foram embora. Otomo vibrava com uma sombria concentração, mas Marclay parecia estar descontraído.

Vestindo uma “sweatshirt” azul, percorria com os seus dedos a agulha do fonógrafo, como se estivesse a tocar piano, fornecendo um ambiente percussivo ao álbum que tinha escolhido – uma banda sonora recheada de instrumentos de cordas. Depois acariciou a agulha, um gesto sensual que criou um horrível som de silvos. Tocou um disco de jazz coberto com um X de fita Gaffa. Depois tentou alguns movimentos novos: amassou a capa de um disco numa bola de papel e atirou-a para cima do vinil zumbidor, onde bateu na agulha como se fosse o pára-lamas de um carro. Bateu com discos na parte lateral dos pratos, criando um rugido de terramoto. Ele e Otomo mal olharam um para o outro, mas ao escutarem-se atentamente construíram uma estrutura sólida – intervalos de chamada e resposta, um momento para um pico de intensidade, um “fade” controlado até ao silêncio. Tal como em “The Clock”, Marclay estava a fazer uma poderosa declaração de intenções com uma série de pequenas atitudes. Não tinha tido tempo para escolher os discos de uma forma cuidadosa, mas fez com que isso funcionasse a seu favor. Quando a performance terminou, parecia mais feliz do que alguma vez eu já o tinha visto. “Isto é muito diferente de quando estamos a construir um objecto, o mostramos e depois vamos embora”, explica. “Com a música, o importante é o momento – aquele segundo exacto.”

Tradução de Eurico Monchique

Exclusivo PÚBLICO/New Yorker

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