Com Sonia Wieder-Atherton um concerto não é apenas para ouvir

Odisseia para violoncelo e coro imaginário constitui uma bem sucedida experiência da violoncelista Sonia Wieder-Atherton em torno da renovação e transformação do ritual do concerto

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A violoncelista Sonia Wieder-Atherton Fundação Calouste Gulbenkian

Para além da interpretação de um amplo leque de repertórios, a violoncelista franco-americana Sonia Wieder-Atherton — última convidada do ciclo Teatro/Música, organizado pela Gulbenkian e pelo Teatro Maria Matos — tem-se distinguido pelas suas tentativas de renovação do ritual do concerto, recorrendo frequentemente à encenação e ao diálogo com outras artes.

 Em 2011, quando se apresentou na Culturgest disse em entrevista ao PÚBLICO: “Não podemos ficar anos e anos a tocar o mesmo repertório da mesma maneira. Não é que eu pense que os concertos tradicionais não sejam bons, apenas defendo que um concerto não é apenas para ouvir. Tento realizar um evento em que todos os sentidos estejam alerta.”

Foi este o tipo de experiência, ainda pouco habitual nas salas de concerto mais convencionais, que Sonia Wieder-Atherton trouxe à Gulbenkian através de dois concertos encenados: <i>The Night Dances</i> (com a poesia de Sylvia Plath na voz da actriz Charlotte Rampling e as Suites para Violoncelo de Britten) e <i>Odisseia para Violoncelo e Coro Imaginário</i>, terceira etapa de uma trilogia dedicada ao Mediterrâneo. Uma série de filmes (incluindo o olhar de Chantal Akerman sobre a obra da violoncelista) e um encontro com o público complementaram este percurso que retrata uma artista invulgar, que não se conforma com os modelos e paradigmas herdados.

Sonia Wieder-Atherton contraria a tendência do intérprete cada vez mais especializado no seu instrumento. Não se contenta em ser uma  violoncelista de extensos recursos técnicos e artísticos, estendendo a sua actividade à composição, à realização de arranjos e à encenação e combina essas vertentes com o trabalho de equipa.

No caso da <i>Odisseia para violoncelo e coro imaginário</i>, o cenário de Romain Pellas, no qual se erguem pilares formados por blocos estilizados que convocam antigas civilizações; o subtil e engenhoso desenho de luz François Thouret; e a elaborada banda sonora realizada por Franck Rossi, da qual emergem os sons impetuosos do caos, do vento, do mar e da tempestade, para além de múltiplas vozes em distintas línguas e excertos sonoros de filmes de Fellini, Pasolini e Rossellini, são elementos cruciais dessa aventura em mutação constante protagonizada por Wieder-Atherton e pelo seu violoncelo.

Mais do que um cenário sonoro, objecto de um cuidadoso trabalho ao nível de montagem, mistura e distorção, a banda sonora (ou “coro imaginário”) torna-se uma entidade viva com a qual o violoncelo entra em diálogo e, por vezes, em conflito. A “voz” do instrumento assume cores diversas e inflexões melódicas de grande variedade através de criações de Sonia Wieder-Atherton que se inspiram, por exemplo, numa salmodia egípcia e em cantos de origem corsa, hebraica e árabe-andaluza (este último na sequência da <i>Elegia eterna</i> de Granados).

Apropria-se também de repertório canónico como o Prelúdio da Suite nº 6, de Bach, a Sinfonia Concertante op. 125, de Prokofiev, a famosa <i>Casta diva</i> da <i>Norma</i> de Bellini — tocada com um <i>cantabile</i> imaculado, quer na parte gravada, quer ao vivo — ou o <i>Manfred</i>, de Schumann, e revisita a música recente de George Aperghis (que tem dedicado várias obras a Wieder-Atherton), com <i>Le rest du Temps</i>.

Reduzidas a excertos e em vários casos objecto de manipulações, estas peças são inseridas numa outra narrativa. Ganham novas dimensões de sentido, ao mesmo tempo que são desviadas do seu contexto original. Se pensarmos apenas na dimensão sonora, o resultado final poderia assemelhar-se a uma manta de retalhos, mas a concepção geral e uma dramaturgia cuidadosamente arquitectada com várias âncoras no imaginário colectivo sobre o Mediterrâneo consegue criar um todo coerente e eficaz, quando entendido como espectáculo global: “um evento em que todos os sentidos estão alerta”, conforme as intenções da própria Wieder-Atherton.

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