Com o novo Teatro Municipal, o Porto vai “passar do 8 ao 80”

Tiago Guedes O recém-nomeado director artístico do novo Teatro Municipal do Porto acredita que o público que desapareceu com o progressivo apagamento do Rivoli depois da sua entrega a Filipe La Féria pode ser recuperado. E que a cidade tem no Teatro do Campo Alegre outra “ferramenta de luxo” que é urgente pôr ao serviço da criação artística.

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Escolhido por concurso público para dirigir uma nova instituição da cidade – o Teatro Municipal do Porto, que resultará da fusão do Rivoli e do Teatro do Campo Alegre –, Tiago Guedes, 36 anos, coreógrafo, ex-director do Teatro Virgínia, começa a instalar-se no seu gabinete com vista para uma Baixa “em completa revolução” e para um equipamento que os três mandatos de Rui Rio esvaziaram progressivamente, primeiro com a concessão a Filipe La Féria e depois, já “em muito mau estado”, com o downgrade para sala de aluguer pura e dura.

A cinco meses do arranque da primeira temporada, agendado para 20 de Janeiro de 2015, dia em que o Rivoli festeja o seu 83.º aniversário, o novo director artístico tem dois teatros para reconstruir, um dos quais praticamente do zero, e todo um trabalho de recuperação de públicos pela frente – mas acredita que apesar das feridas da última década o Teatro Municipal do Porto é “uma ferramenta de luxo” com enorme “potencial de futuro”, para além dos três anos que contratualmente o ligam ao projecto. “Uma coisa que me define é nunca querer ficar muito confortável no sítio onde estou. Mas construir um teatro a partir dos alicerces é um trabalho moroso e delicado – não vejo isto como uma missão temporária, mas também sei que não vou morrer nesta secretária”, diz ao PÚBLICO nesta sua primeira grande entrevista desde que se mudou para o Porto.

Meses antes de ser oficialmente nomeado como director artístico do novo Teatro Municipal do Porto já circulavam boatos de que seria o candidato escolhido. Essa polémica prejudica a relação que terá de estabelecer com o meio artístico da cidade?
Não vou mergulhar numa polémica que não acho produtiva. Muita gente não me conhecia, o que é normal porque sou de fora, e isso poderá ter criado alguns a prioris acerca do que eu poderia vir a ser como programador. Mas acredito que a partir do momento em que começar a trabalhar com as pessoas a polémica vai desvanecer-se completamente. Aquilo que a comunidade artística reivindicava – um teatro comprometido com um serviço público de cultura, com um director artístico, uma equipa e um orçamento – está aqui. E com a reabertura do Rivoli o diálogo será muito mais premente no sentido de uma relação eficaz e efectiva com o meio. Sem paternalismo, que eu não defendo de todo para a cultura: o trabalho artístico tem de valer por si, no Porto, em Lisboa, na China ou em Paris. Não quer dizer que não tenha de haver uma especial atenção ao que se faz na cidade: um teatro municipal tem responsabilidades muito para além da co-produção ou do acolhimento, nomeadamente na forma como proporciona espaço para ensaios e residências, ferramentas de trabalho, condições de produção e de coaching. Para os artistas da cidade isso é muito mais importante do que apresentar o seu trabalho na sala grande do Rivoli. De resto, é óbvio que eu quero trabalhar com as pessoas – quem seria esse director assassino que não quer trabalhar com a comunidade artística local?

Que primeiras impressões tem dessa comunidade?
Há uma grande expectativa acerca da reabertura do teatro – normal, numa cidade que passou tantos anos privada de uma política autárquica e cujas outras instituições de referência são nacionais ou privadas, como o Teatro Nacional São João (TNSJ), a Casa da Música ou a Fundação de Serralves, com as suas linhas programáticas muito definidas. Faltava uma relação de meio-termo, que ligasse o subterrâneo ao institucional; o teatro municipal opera nesse patamar de proximidade, e é isso que é muito interessante na sua missão. A inexistência de uma política cultural fez com que muita actividade subterrânea, auto-criada, nascesse no Porto – agora passa a existir mais um parceiro que pode dar visibilidade e melhores condições de produção a essa actividade, até porque o Teatro Municipal do Porto será acima de tudo um teatro de co-produção, interessado em dar um apoio eficaz na construção dos espectáculos. Foram anos e anos sem diálogo – sem sequer conseguir chegar a um sítio para falar com alguém. Muro atrás de muro atrás de muro. Isso criou muita resistência – vendo de fora, e de forma muito fria, percebo a polémica. Ainda para mais tendo em conta que houve um engajamento tão grande dos artistas na defesa do Rivoli em 2006, quando se decidiu entregar a privados um teatro municipal, coisa raramente vista mas que também é a história deste sítio – uma história que cria muito mais expectativas porque efectivamente é passar do 8 ao 80.

Herda um teatro muito marcado pela direcção carismática da Isabel Alves Costa e depois pelo trauma Filipe La Féria. Como encontrou o Rivoli?
Encontrei um teatro de acolhimento puro e duro: o Rivoli não tem sido um teatro de programação própria, tem sido um teatro de aluguer, com uma equipa técnica e de produção mínima, de seis pessoas. No Campo Alegre, pelo contrário, há uma equipa formada que até funciona bem e uma programação cíclica – com as Quintas de Leitura, os projectos do serviço educativo, as sessões e os ciclos de cinema da Medeia... Estamos a fundir as equipas dos dois teatros para montar um organigrama e verificar as lacunas que é preciso colmatar. Há departamentos essenciais que não existem, como o de comunicação, que vamos passar a ter em Setembro. Quero puxar para o projecto pessoas que venham incutir uma nova energia em áreas muito específicas: na produção, na comunicação, na mediação de públicos, será preciso montar uma equipa. Mas em relação ao Rivoli, especificamente, o que se sente é que este teatro não tem sido bem cuidado. Não por falta de esforço e de zelo da equipa, mas – e isto tem de se dizer – por ele ter efectivamente sido deixado em muito mau estado pelo Filipe La Féria. Houve manutenções do equipamento que não foram feitas e mudanças estruturais que vão requerer obras de monta no final deste ano – para adaptar a sala às especificidades dos espectáculos de revista, foi montado um palco em cima do palco que o eleva em 30 centímetros e acrescentou-se uma plataforma elevatória que continua lá... É preciso remover isso tudo e requalificar o que está por baixo. Até lá, vamos ter de abdicar das primeiras três primeiras filas, que com a subida do palco deixaram de ter visibilidade…

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A cinco meses do arranque da primeira temporada, 20 de Janeiro de 2015, o novo director artístico tem dois teatros para reconstruir, um dos quais do zero, e todo um trabalho de recuperação de públicos pela frente

Durante quanto tempo é que o Rivoli vai ficar privado do Grande Auditório?
As obras vão acontecer no final do ciclo O Rivoli Já Dança, entre Dezembro e Janeiro. Temos um mês; vamos ter de conseguir.

E não haverá nenhum entrave financeiro?
O ideal era entregar a factura ao Filipe La Féria, como é óbvio, e pôr-lhe o material que ele deixou no Rivoli à porta do Politeama. Mas isso não vai ser possível porque foi tudo feito com consentimento político.

O Teatro do Campo Alegre está mais funcional?
Sim, e é capaz de ser um dos melhores e mais bem equipados teatros do país: tem quatro salas, três apartamentos, podem alojar-se 16 pessoas lá dentro… É uma ferramenta de trabalho incrível e com uma equipa polivalente. Temos de fazer um encontro entre os dois teatros e tirar as coisas boas de cada lado. A ideia é mesmo fazer uma equipa una; depois, as actividades acontecerão no pólo do Rivoli ou no pólo do Campo Alegre, sendo que o Campo Alegre será sempre muito mais um viveiro, uma plataforma criativa…

Mas tem aquele auditório gigante…
Que vai continuar a ser usado. Mas de repente termos mais dois teatros na cidade a funcionar nos mesmos fins-de-semana não faz sentido, acho que se tem de ir com calma. Até porque não estou certo de que de repente haja uma corrente de públicos a regressar. A programação vai ter de ser inevitavelmente rotativa e com base em carreiras mais curtas aqui no Rivoli, que terá uma programação internacional e nacional e será o teatro de apresentação por excelência: está no centro da cidade, é um lugar emblemático e é fácil cá chegar; o Campo Alegre, que quer se queira quer não nunca será um lugar de passagem, será essencialmente um sítio para as estruturas da cidade aproveitarem, embora não vá deixar de ter espectáculos, nomeadamente aqueles que se prestem a carreiras mais longas. Mas sobretudo haverá ali muito espaço de ensaio, residência e produção disponível para companhias e artistas que neste momento não têm sequer sítio para trabalhar, ou porque perderam os seus espaços ou porque estão em instalações muito precárias. Gostava muito que o Campo Alegre fosse essa ferramenta de luxo – isso sim, é pôr o teatro municipal ao serviço das pessoas. E acho que não se deve ter pena de o fazer num teatro tão bom e tão bem equipado, pelo contrário. De qualquer modo, a ideia não é guetizar as companhias do Porto nesse pólo: vou querer apresentar no Rivoli muitas coisas que hão-de ser criadas lá.

Já disse que o Rivoli vai querer recuperar os públicos da dança, do novo circo e das marionetas. E o teatro?
A dança, o novo circo e as marionetas correspondem à lacuna que existe na cidade e ao diálogo que se quer fazer com a história do Rivoli – é muito importante recuperar esse lado histórico e simbólico, e também é uma boa homenagem que se faz à Isabel [Alves Costa]. Em relação à música e ao teatro, quero que o que se apresente aqui seja muito particular; não faz sentido duplicar a Casa da Música e o TNSJ. Mas a abertura do Teatro Municipal do Porto será muito boa para o S. João, porque vai permitir-lhe reorganizar-se na sua missão: tem sido o bombeiro de serviço e o Rivoli vai libertá-lo de uma carga muito grande no trabalho com as estruturas da cidade.

A Seiva Trupe foi despejada do Teatro do Campo Alegre, que também construiu, há menos de um ano. Vai falar com a companhia?

Uma das grandes vantagens de eu não ser do Porto é ter um ponto de vista global – sou isento, não faço parte deste grupo ou daquele. Vou fazer reuniões sectoriais com todas as companhias e com todos os artistas para auscultar as expectativas e os projectos que têm para 2015; a Seiva Trupe será convidada para a reunião sectorial do teatro, caso contrário estaria a discriminar. É uma companhia histórica da cidade mas há outras que não tiveram nem de longe nem de perto as condições que a Seiva Trupe teve durante todos estes anos, e num regime muito pouco aberto a outras estruturas da cidade. Não me parece que a minha posição possa ser a de dar outra vez prioridade a essa relação.

O que acontecerá no Pequeno Auditório do Rivoli?
Imagino que possa passar a funcionar mais como sala de cinema porque há poucas no centro da cidade e seria muito interessante ter aqui coisas que se fazem actualmente no Campo Alegre – tenho de me reunir com a Medeia para tentar perceber se por exemplo os ciclos de cinema podem passar a ser feitos aqui, mantendo as sessões regulares no Campo Alegre. E também gostava que algumas actividades do serviço educativo acontecessem no pequeno auditório, assim como coisas muito específicas mais ligadas à literatura, às conferências …

O Porto precisa de um novo festival de artes performativas?
Antes de se começar a pensar em festivais, que são eventos muito pesados, com orçamentos grandes e timings de programação alongados, será preciso testar um ano ou um ano e meio de funcionamento do teatro municipal. De qualquer modo, o que defendo é um festival feito em conjunto com outras instituições – um grande festival de cidade, à séria, e congregando outras áreas que não apenas as artes performativas. Por mais excitante que a programação do teatro municipal possa ser, e eu espero que seja, o festival é outro tipo de cartão-de-visita que a médio prazo quero considerar – mas a prioridade neste momento é pôr a máquina a funcionar. Não vou estar a condenar o trabalho de arranque do teatro já a pensar num festival de artes performativas daqui a um ano e meio; seria contraproducente com o trabalho de base que tem de ser feito agora.

É-lhe pedido que programe também para o espaço público?
O caderno de encargos não era muito claro quanto a isso, mas defendo que o Rivoli deve fazer algumas coisas na rua, nomeadamente com a vizinhança – na Praça D. João I, na Avenida dos aliados, no Bolhão. E no Campo Alegre também quero trabalhar com a vizinhança das faculdades de Letras e de Arquitectura, perceber como ir buscar aqueles públicos. Mas mais uma vez acho que primeiro temos de construir as coisas dentro da própria casa. Ainda assim, no fecho de temporada – que ainda não sei se será no final de Junho ou no início de Julho por causa das festas de S. João – quero fazer uma grande festa na rua, na Praça D. João I.

Já sabe quanto dinheiro vai ter para programar?
Não. Há uma verba para o Teatro Municipal do Porto inscrita no orçamento que vai ser discutido em Outubro e aprovado em Novembro. Estou a trabalhar no pressuposto de que tudo vai correr bem; se não, farei algumas pequenas adaptações.

 

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