Com o "Brexit" e Trump, Lisboa é ainda mais atractiva para uma Second Home

A Second Home, um dos espaços criativos mais conhecidos do mundo, abre esta semana em Portugal. Rohan Silva fez-nos uma visita guiada em Londres e diz que o espaço de Lisboa tem tudo para dar certo, até porque a cidade é cada vez mais atractiva.

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Dois acontecimentos que surpreenderam o mundo nos últimos tempos – o "Brexit" inglês e a vitória de Donald Trump nas eleições americanas  – podem funcionar a favor de Portugal. “Com Trump sabe-se lá o que aí vem. O 'Brexit' abriu uma era de incerteza no Reino Unido. Lisboa não é perfeita, mas está diferente do que era há cinco anos, quando a crise financeira atingiu o país. E mais importante: é uma cidade no caminho certo, com potencial para se tornar mais atractiva e competitiva.”

Quem o diz é Rohan Silva, 35 anos, que foi conselheiro do ex-primeiro-ministro David Cameron para o empreendedorismo e novas tecnologias e uma das mentes mais faladas em Downing Street durante anos. É também co-fundador da Second Home, espaço de trabalho criativo que ganhou reputação em Londres e que chega agora a Lisboa, ao primeiro piso do mercado da Ribeira.

Rohan não acredita em cataclismos. “Trump tem de responder perante o sistema político americano. Não é rei, nem os EUA são a China.” E Lisboa também não é o paraíso. “Existe muito por fazer, a taxa de desemprego é alta e as leis pouco flexíveis.” Mas o caminho delineado pode fazer a diferença. Há quinze dias, no jornal Evening Standart, Rohan Silva assinava um artigo de opinião onde titulava que Lisboa estava a dar uma lição a Londres em termos de economia criativa. “É verdade”, ri-se ele, quando o visitamos no espaço londrino da Second Home e o lembramos daquele artigo no qual comentava a Web Summit, que reuniu em Lisboa 53 mil participantes e quase 700 oradores, entre o quais ele próprio.

“Foi uma decisão inteligente. Foram dispendidos dinheiro e energia, mas estão certos: Lisboa é incrível, mas ainda não suficientemente conhecida.” Existem, claro, riscos, acrescenta, porque “Lisboa não pode ficar conhecida apenas como cidade tecnológica.” Tem potencial para mais. “É também design, cinema, música, moda ou arte. É isso que também queremos na Second Home, uma micro-representação da cidade e da sua moderna economia, onde a tecnologia é relevante, mas é apenas um elemento.”

Diz que Londres é ainda o epicentro das indústrias criativas “mas está a ir na direcção errada: as políticas de habitação têm sido ineficazes, com casas e arrendamento exorbitantes, e as leis de imigração cada vez mais burocráticas”. No seu parecer, a capacidade da cidade em atrair novos talentos diminuiu. “Está hoje mais fechada em si própria e reprimida”, reflecte, dando como exemplo o facto de 40% dos espaços musicais terem encerrado nos últimos anos.

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Lisboa não é perfeita, mas está diferente do que era há cinco anos, quando a crise financeira atingiu o país. É uma cidade no caminho certo, com potencial para se tornar mais atractiva e competitiva. Rohan Silva

“Parece-me que as políticas de Trump também terão esse efeito nos EUA. Noutra perspectiva, vejo cada vez mais investidores interessados em perceber o que se passa em Lisboa.” Dá um exemplo: “na noite das eleições americanas, na Web Summit, um americano dizia que se Trump ganhasse se mudaria de imediato para Lisboa. No dia seguinte encontrei-o e procurava casa. É apenas um sintoma. Mas está a acontecer.”

Abrir em vez de fechar

Nos últimos dois anos, sempre que se fala de lugares futuristas onde estão a surgir ideias inovadoras, a Second Home surge destacada. Perto do mercado de Spitalfields, envolvido pelas zonas de Brick Lane e Shoreditch, epicentro das dinâmicas urbanísticas, culturais e de boémia, situa-se um edifício transparente de quatro pisos, com desenho vanguardista.

É lá que nos recebe este filho de imigrantes do Sri Lanka, ágil na conversa e denotando um pensamento transversal que cria ligações entre temas que, aparentemente, não seriam relacionáveis. Não espanta que em Downing Street tivesse fama de inquieto e que as suas ideias seduzissem David Cameron ou o seu ministro das Finanças, George Osborne.

A ideia da Second Home germinou quando Silva se apercebeu que o mundo dos negócios estava a mudar, que as empresas queriam trabalhar cada vez mais de forma colaborativa mas os edifícios não permitiam a interacção. Apenas multinacionais como a Google ou a Apple “podiam dar-se ao luxo de investir milhões em ambientes mais criativos”. E se há alguém que parece perceber de pequenas empresas, confinadas a lugares improvisados, é ele.

Enquanto esteve no governo de Cameron desenhou o plano Tech-City para fomentar o potencial dos pequenos negócios na economia britânica. Quando a iniciativa foi lançada, em 2010, existiam 200 companhias tecnológicas no Este de Londres. Hoje são 5 mil. “A ideia da Second Home é dar espaço para que empresas criativas, entre 5 e 25 pessoas, tenham um ambiente semelhante ao que os gigantes podem oferecer. Existem cada vez mais pequenos negócios de ciência, media, finança, política, design ou tecnologia sem vínculo. Nós encorajamos as ligações.”

Já então, espaços de coworking não eram novidade. Mas a Second Home queria ir mais além, sendo ao mesmo tempo um espaço de trabalho criativo e cultural. Foi com esse objectivo que Rohan Silva se aliou ao empreendedor Sam Aldenton. “Acreditávamos que era possível criar um ambiente que permitisse às pessoas serem mais criativas e uma das formas de o conseguir seria juntar os mais diversos tipos de indústria, tipos diferentes de companhias e em estágios diferentes de desenvolvimento.”

O projecto arquitectónico da Second Home londrina é do atelier espanhol SelgasCano
Uma velha fábrica de tapetes, perto do mercado de Spitalfields, foi transformada num espaço de 24,000 metros quadrados onde não existem linhas rectas
A SEcond Home em Londres é um edifício transparente de quatro pisos, com desenho vanguardista
Há 150 empresas, organizações de carácter social e organismos do sector público que ocupam o edifício
A natureza é omnipresente: mais de 2000 mil plantas invadem um espaço com imensa luz.
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O projecto arquitectónico da Second Home londrina é do atelier espanhol SelgasCano

Os dois partiram à procura de investidores, entre eles o fundo Atomico, criado pelo fundador do Skype, Niklas Zennström, a família Zegna, ou o multimilionário Gerald Chan, que realizou recentemente a maior doação de sempre à Universidade de Harvard. E foi assim que uma velha fábrica de tapetes foi transformada num espaço utópico de 24,000 metros quadrados onde não existem linhas rectas, composto por 1500 mesas ou cadeiras (muitas delas Bauhaus originais) diferentes entre si.

O projecto arquitectónico é do atelier SelgasCano (os espanhóis José Selgas e Lucía Cano), que também assinou o 15.º pavilhão de Verão das Galerias Serpentine em Londres (2015) e o pavilhão espanhol da Bienal de Veneza (2015). É deles também o projecto Second Home no mercado da Ribeira. “Trabalham a partir da ideia de biologia evolutiva, introduzindo a natureza no interior dos edifícios e isso agrada-me”, explica-nos Rohan. Na Second Home londrina a natureza é omnipresente: mais de 2000 mil plantas invadem um espaço com imensa luz.

Estar desperto para o outro

Numa das áreas comuns os aparelhos electrónicos estão proibidos. “Pode-se falar, dormir até, e há sessões de meditação todos dias, mas os telemóveis e os computadores é que não”, ri-se Rohan, que acredita que os membros agradecem o expediente porque passam parte do seu tempo ao computador e ali incentiva-se o estar desperto para o outro.

Foi essa filosofia que levou à abertura de uma livraria do outro lado rua. O design foi inspirado no conto A biblioteca de babel, de Jorge Luís Borges, com uma infinidade de espelhos. Entra-se e sente-se o cheiro, a textura, a orgânica dos livros. Na cave, em 2017, será mesmo possível ver livros a serem impressos e encadernados. “É mais um lugar de encontro entre pessoas e livros, formas de as relacionar com algo que não estavam à espera, cruzando saberes, que é a maneira de abrirmos espaço à criatividade.”

De regresso ao imóvel principal, passamos por diversas áreas e Rohan vai falando das 150 empresas, organizações de carácter social e organismos do sector público que ocupam o edifício. Há desde empresas globais (Cushman & Wakefield, Ernst & Young, Ermenegildo Zegna ou a agência internacional de publicidade Wieden & Kennedy), a tecnológicas americanas (Kickstarter, TaskRabbit, Artsy), passando por negócios de rápido crescimento (Visualise, Anglepoise, Bulb) ou organizações sem fins lucrativos (Syria Campaign, Institute Of Imagination, Unlimited Productions).

“Arriscaria dizer que aqui existem mais mulheres líderes do que em qualquer outro edifício de Londres”, diz, acrescentando que 55% dos membros são mulheres. Oitenta por cento destas empresas são provenientes da moda, finança, design, tecnologia, cinema, música ou instituições solidárias, enquanto os restantes vinte por cento são seleccionadas pelo facto de aquilo que fazem ser fundamental para todas as empresas que estão a crescer – capital de risco, recrutamento, branding, relações públicas, gestão ou serviços legais. Para além dos membros residentes, existem também transitórios, por norma freelancers ou designers.

Em Lisboa, a Second Home ocupa 1300 metros quadrados no primeiro piso do Mercado da Ribeira e o projecto arquitectónico é assinado pelo atelier espanhol SelgasCano
O espaço já tem 75% da ocupação garantida
É um espaço aberto, com mais de 1000 plantas e árvores, com candeeiros e cadeiras de escritório diferentes, biblioteca, café e bar, salas de reuniões privadas, uma zona de bem-estar com sessões de meditação, ioga ou pilates, uma área cultural para sessões de cinema, música ao vivo ou palestras
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Em Lisboa, a Second Home ocupa 1300 metros quadrados no primeiro piso do Mercado da Ribeira e o projecto arquitectónico é assinado pelo atelier espanhol SelgasCano

Claro que não basta colocar empresas de ramos diferentes a trabalharem em espaços transparentes para gerar a comunicação. Rohan sabe-o. Há que provocar a interacção, não só entre os membros da Second Home, como com o exterior. É por isso que o restaurante e cafetaria são abertos à comunidade. O mesmo acontece com os eventos culturais gratuitos que promovem. A islandesa Björk foi uma das pessoas que conheceu há pouco tempo o espaço, enquanto a designer de moda Stella McCartney, o magnata Richard Branson, o escritor Nick Hornby, a cantora Annie Lennox ou o arquitecto Richard Rogers foram alguns dos conferencistas recentes.

“A energia é empregue a provocar o diálogo em encontros, acontecimentos artísticos, conversas e debates ou seminários, seja sobre impostos, direitos digitais ou música”, explica Rohan.

Tinha de estar em Lisboa!

Em Lisboa o objectivo é o mesmo. Foi há dois anos que conheceu a cidade. Ficou alguns dias e impressionaram-no a boémia, o urbanismo, a interacção entre as indústrias criativas e a cena artística. “Agradou-me a textura e a fibra da cidade”, resume. Regressou meses depois com a mulher, a arquitecta australiana Kate McTiernan, e foi aí, diz, que se fez o clique: “Estávamos no Cais do Sodré, às 4 da manhã, e demos por nós a pensar que em Londres já não é possível sair assim, de forma relaxada. Tinha de estar em Lisboa!”

Claro que nem tudo é pacífico. Espaços como a Second Home são por vezes acusados de serem uma espécie de ilha para as elites da tecnologia, sem ligação com a realidade envolvente. Ao mesmo tempo, conceitos que fizeram furor na última década, como o de “cidades criativas,” têm vindo a ser postos em causa, pelo facto da atracção de talentos poder gerar fenómenos de gentrificação. Por último, discute-se qual poderá ser o papel da nova economia digital, com muitas vozes a alertarem para a instabilidade social e económica de alguns desses processos, conduzindo muitas vezes ao desemprego e à precarização.

Rohan está consciente dos conflitos, inclusive que o turismo, em alguns bairros lisboetas, tem gerado preocupação. “Lisboa está num momento privilegiado, em que ainda nada de essencial foi posto em causa, podendo aprender com os erros cometidos noutros locais, como Londres, por exemplo ao nível da habitação, e estimular o que faz falta”, reflecte, alertando ao mesmo tempo para a responsabilidade social das empresas, no sentido de serem cívicas, inclusivas e promoverem a diversidade.

Ainda assim ele sabe que isso não basta. “Uma das causas que conduziram à vitória de Trump e do ‘Brexit’ é a estagnação económica da classe trabalhadora. E uma das razões é a tecnologia que está a substituir postos de trabalho numa grande escala. Antes era o trabalho fabril, mas agora é na contabilidade, na finança ou nos bancos que os programas de software estão a substituir as pessoas.” Nesse contexto, diz ele, os trabalhos do futuro serão os que envolvem criatividade.

E voltamos à Second Home. “Acreditamos que projectos como o nosso podem ser importantes, conseguindo que mais gente entre nessa categoria de trabalho.” Claro que nem toda a gente se tornará empreendedora ou criativa. Longe disso. Mas, na sua visão, “se forem criados novos postos de trabalho, essa será a melhor forma de parar com a vitória dos Trump pelo mundo fora. É um desafio global. E os governos têm de ir na direcção certa.”

É o que tem sido feito em Portugal, na sua opinião, o que não deixa de ser curioso de ouvir vindo de alguém que integrou um governo conservador. “Cameron era socialmente e economicamente liberal, tal como foi quando legalizou o casamento gay”, justifica, e “em Portugal há uma agenda centro-esquerda progressista, mas também com interesse na inovação, no conhecimento, com incentivos para pequenas empresas e políticas de emigração inteligentes, e isso é fundamental.”

Para ele a grande divisão do mundo de hoje não é entre direita e esquerda. É entre abertura e fechamento. “A economia das cidades tem tudo a ganhar com a abertura, olhando em frente de uma forma progressista e dinâmica", conclui ele. "Com o 'Brexit' a Inglaterra vai fechar-se e Trump representa o mesmo para os Estados Unidos. Temos que contrariar isso.”

 

 

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