Com a ópera, há uma comunidade que acorda

Dificilmente se mudam comportamentos por decreto ou por sentença. Talvez mudem pela música. É a esperança do projecto Ópera na Prisão, que esta quinta-feira leva uma adaptação de Don Giovanni ao palco da Gulbenkian.

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ADRIANO MIRANDA

"Eles já vêm condenados, nós não temos que os condenar. Temos que os penalizar se o comportamento não for correcto, mas depois temos que os ajudar. Eles são jovens, não são adultos. É a primeira vez que eles caíram, se calhar..." Não voltam a cair: é a esperança de Alfredo Almeida, responsável pelo serviço de vigilância e segurança do Estabelecimento Prisional de Leiria Jovens. Recorda o passado de muitos destes jovens, que já passaram por casas de correcção, antes de a cadeia lhes ter saído no destino. Também para ele, a ópera Don Giovanni 1003, Leporello 2010 é um exemplo.

É mais um dia feliz para Luís Salanga, um dos artistas do projecto Ópera na Prisão. A rotina da antiga serralharia, de onde sai agora, é muito diferente da do resto da prisão. Tem passado os últimos dias nesta sala de ensaios improvisada, e é como se o mundo ali parasse: "Nem parece que estamos cá dentro. Isto ajuda-nos a esquecer onde estamos. A esquecer um pouco deste lado. Ficamos só lá.”

As falas são em português, mas canta-se em italiano, a língua com que Mozart escreveu, no século XVIII, Don Giovanni. A ópera foi recriada propositadamente para o projecto. Aqui todos trabalham para o mesmo: os músicos da Sociedade Artística e Musical dos Pousos (SAMP), cuja acção inclusiva acaba de ser premiada pela Acesso Cultura, os músicos da Fundação Calouste Gulbenkian e os reclusos. O colectivo leva esta quinta-feira a peça ao Grande Auditório da Gulbenkian, onde, como na antiga serralharia onde ensaiam, não há grades nem qualquer barreira.

A pouco mais de uma semana da estreia, é o director artístico da SAMP, Paulo Lameiro, que começa o ensaio, pouco passa das 10h. As pautas foram-se “traduzindo” para uma linguagem que todos percebessem. No início, a expectativa era grande para todos. Os reclusos que não sabiam ao que vinham, pois muitos pensavam, como Luís, que “a ópera era uma coisa menos feliz.” Os músicos que não previam como estes jovens “tão impulsivos” iam reagir. E os funcionários da prisão que não adivinhavam o que “isto ia dar”, descreve Carla Pragosa, técnica superior de reeducação da prisão. “Estão muito focados agora.” A manhã de ensaio flui quase sem pausas.

Começaram por ser 53, mas as frustrações, a falta de vontade ou a saída em liberdade fizeram com que vários abandonassem o projecto. Ficaram 22. Mas, “se tudo correr bem”, esta é a última coisa que Luís Salanga faz enquanto recluso: deve sair no dia seguinte à estreia “e nada melhor do que acabar com ‘O espectáculo’”. Nos que ficam, pesam o compromisso e o orgulho, para muitos novos, de levar o projecto até ao fim.

Esta manhã, Luís é um dos 17 reclusos no ensaio, mas há dois colegas que, de fora, os observam. Tiveram de se estabelecer regras: “Definimos que seis meses antes de qualquer espectáculo, se tivessem uma infracção disciplinar grave não iam à rua.” Mas a imposição não parece revoltar os cinco que ficaram fora do espectáculo. Pelo contrário. Lidam bem com regras, explica Carla: “Assim sabem até onde podem ir."

Adriano Miranda / Público
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Adriano Miranda / Público
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Adriano Miranda / Público
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Adriano Miranda / Público

O convite da Gulbenkian, que financia o projecto através do programa Partis e acabou por incluir a estreia no programa Jardim de Verão, não estava previsto, mas permitiu que a peça passasse, mais uma vez, as grades da prisão. Já em Julho de 2015 fora apresentada, em duas noites, no Teatro Miguel Franco, em Leiria.

“No princípio pensei que fosse uma coisa não tão grandiosa. Porque isto agora é importante na minha vida. Ajudou-me em várias fases e não, nunca pensei que fosse tão bom.” Luís Salanga cada dia quer mais.

Pouco mais de um ano depois de ter entrado na prisão, teve curiosidade pelo projecto e inscreveu-se. Havia muito tempo a precisar de ser ocupado: “Era uma coisa que nunca tinha feito e fui com o intuito de aprender alguma coisa." Tem um bichinho por um “outro palco que é o campo de futebol”, "muito sangue na guelra" e 23 anos. Quatro anos e quatro meses já “gastos” lá dentro. Já pensou em juntar-se a projectos parecidos cá fora. “Mas acho que a minha área é mais a dança. E vou fazer por isso, sem dúvida.”

Lançados à sociedade

São impulsivos, alegres e irreverentes. Na prisão, querem fazer tudo como é próprio da adolescência ou do final da juventude.

É aqui que muitos iniciam a idade adulta e o crescimento na prisão vai além de corrigir comportamentos: “Estão a desenvolver parte das características que os vão acompanhar e que os fazem mais fortes ou não”, diz Carla Pragosa, que, como Alfredo Almeida, sente o peso (e o medo) de que eles “voltem a cair cá dentro”.

Neste estabelecimento, os reclusos têm entre 16 e 25 anos. Mas, além da idade, há outra circunstância comum entre os participantes do projecto: todos foram condenados a penas elevadas. "É malta da pesada" como chegou a dizer o director da prisão. Iam em início de pena quando tudo isto começou. E era assim que tinha que ser para poderem acompanhar, ao longo destes últimos três anos, os artistas da SAMP.

Hoje é uma ópera. Mas amanhã pode ser uma peça de teatro, um atelier de pintura ou um espectáculo de dança. Mais do que fazer arte, a SAMP e os responsáveis da prisão pretendem dotar os jovens de soft skills que os ajudem na reinserção social. Acordá-los para as relações que podem estabelecer com a comunidade, quando, com o fim da pena, forem “largados” lá fora. A ideia é que procurem aí uma instituição artística que os agarre.

A música, ou qualquer tipo de arte, pode ser um factor de protecção. “Porque lhes dá uma coisa que é 'fixe' de ser feita, que pode ser transgressiva (como é o princípio de toda a arte), mas não é socialmente condenável”, explica José Ricardo Nunes, director do estabelecimento prisional.

O exemplo pode partir de um coro, como o que José Ricardo frequenta – um autêntico "espelho da sociedade", onde estão médicos, advogados, pintores da construção civil, arquitectos e enfermeiros. "Existe ali uma instituição musical onde podem passar os dias e as noites e participar em espectáculos", explicou o director. São espaços onde podem também conhecer novas pessoas, outras formas de pensar. E quem sabe um emprego.

Fez-se um clique

Os resultados não esperam pela saída em liberdade dos reclusos. Carla Fragosa não tem dúvidas de que estes jovens estão hoje mais preparados “para integrar a sociedade, para procurar trabalho, porque se sentem também mais responsáveis”. A ópera foi um teste à capacidade de resiliência dos que ficaram. Vê que os mesmos jovens que tinham “pouca tolerância à frustração” obtiveram características que lhes “permitem também ter mais sucesso na sociedade, ter mais capacidade emocional de gerir o dia-a-dia, de resolver conflitos e de parar quando devem parar”.

“Algo está a ser feito, algo já caiu na cabeça deles e bateu forte”, e isto é uma alegria para Alfredo Almeida. “Não digo que destes 22 todos vão ser uns grandes homens aí fora. Mas que fez lá um clique, não tenho dúvidas.” 

Há mudanças “a todos os níveis.” No dia-a-dia, com os colegas nas celas, onde já não há tantos conflitos, nota. Mesma na ópera, eles, “que não se davam tão bem, agora são amigos, tornaram-se uma equipa.” E na própria atitude consigo próprios, acrescenta Carla. “Estão empoderados, porque agora fazem parte de um projecto importante e têm que fazer boa figura. Sabem que não podem deixar mal as pessoas que apostaram neles.” 

A lição valeu para ambos os laços: se a confiança fortaleceu os reclusos, também levou os funcionários do estabelecimento prisional a dar a quase todos medidas de flexibilização de pena, que lhes permitiram ir a casa de vez em quando. Uma quebra no “confinamento” da prisão: “Estes jovens vivem momentos de grande isolamento no fim das actividades. São encerrados às 19h, até ao outro dia de manhã”, salienta Carla.

Agora resta que contagiem os restantes 190 reclusos jovens de Leiria. “Já dizem: 'não faças isso porque depois vais-te prejudicar’. Este pensamento consequencial era, para eles, quase inexistente.” Para a técnica de reeducação, o caminho está traçado.

Na prisão são poucos os que fogem à regra. Chegam desinteressados, “acham que a vida terminou", explica o guarda. Matheus era um deles, quando entrou com uma pena de 15 anos pela frente. Agora também é “bem capaz” de ir para um grupo de música. “Nem que seja no rap”, que é o que gosta de escrever e cantar. Teatro? Não sabe, mas os elogios dos músicos deixam-no a pensar. Sim, é isso que por aqui acontece muito: as palavras podem mudar mesmo as pessoas. Pelo menos é o que Luís não se cansa de dizer. “Ouvir os elogios? Jeeeez, é fantástico. Ajuda-nos a queremos ser cada vez melhores.”

Texto editado por Inês Nadais

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