Coleccionar, conservar, expor: o museu visto pelos artistas

Filipa Oliveira assumiu a direcção do Fórum Eugénio de Almeida em Évora. O Museu a Haver é a sua exposição-manifesto.

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Musa Paradisíaca

O convite para a inauguração de O Museu a Haver, que teve lugar em meados do mês de Abril, interrogava pessoalmente cada destinatário. O que é um museu? Qual o lugar dos museus na sociedade contemporânea? Que relações promove com os artistas e com a sua comunidade? Qual é o museu com que sonhamos? Chegados a Évora, verificamos logo de imediato que estas não eram frases de cariz publicitário, destinadas a prender a atenção do visitante e pouco mais.

Pelo contrário, qualquer uma delas abria um leque de hipóteses que não se pretendiam ver resolvidas. Para Filipa Oliveira, a nova directora do Fórum Eugénio de Almeida, importa colocar questões. O modo como elas vão sendo respondidas é um processo, um trabalho a longo prazo que tanto artistas como públicos vão desenvolvendo e resolvendo a pouco e pouco.

Assim, interessa mais perguntar do que responder. Esta é a postura adequada a uma época que se traduz, plasticamente, pela multiplicidade de expressões, inquietações, conceitos a trabalhar e desenvolver. O fim das vanguardas ou neo-vanguardas, de movimentos e afins, tem como consequência a valorização do trabalho individual de cada artista, mesmo quando esse trabalho incide, como aqui acontece, sobre a ideia de museu.

Ora, esta não é a primeira exposição de arte contemporânea no Fórum Eugénio de Almeida. Pontualmente, têm inaugurado aqui, nos últimos anos, mostras individuais e colectivas que possuíam em comum a ligação à cidade de Évora. Mas esta é de facto a primeira vez que uma exposição abdica dessa ligação evidente, e que se assume como sinal de uma “periferia das periferias”: se Portugal  ocupa uma posição marginal no meio da arte contemporânea ocidental, Évora, que não construiu no último meio século tradição de uma actividade artística continuada, surge como um dos pontos mais afastados dessa geografia que é, sem dúvida, sobretudo política. Simultaneamente, a cidade é inegavelmente repositório de imensas riquezas patrimoniais e culturais que importará articular com a novíssima aposta numa actividade expositiva decididamente contemporânea. De que modo? Mais uma vez, Filipa Oliveira escusa-se a responder. E prefere que visitemos a exposição, começando pelos lugares que extravasam os limites do antigo Palácio da Inquisição, onde o Fórum está hoje estabelecido.

Os limites possíveis
Comecemos, por exemplo, pelas adegas situadas já fora de portas, as mesmas onde estagiam alguns dos vinhos que dão nome internacional à Fundação. Aqui, Carla Filipe, que tem trabalhado exaustivamente a ideia de colecção como repositório de memórias, reuniu uma série de instrumentos agrícolas hoje em desuso, expondo-os numa disposição que acentua unicamente (e não sem ironia) o seu carácter plástico; trata-se de Mãos vazias: a mão não é só orgão de trabalho, mas também produto deste. Já perto do Fórum, no Museu de Évora, a sala dedicada aos vestígios arqueológicos romanos recebe uma intervenção de Dora Garcia, uma golden sentence que afirma textualmente que “it is not the past, but the future that determines the present”. Quase ao lado, na Biblioteca Pública, numa lindíssima sala de leitura forrada a estantes com livros antigos, uma das mesas recebe uma peça de Rosa Barba, um monte de letras de feltro recortadas que outrora integraram um texto. Finalmente, no Paço de São Miguel, sede da Fundação e que foi conservado com o mobiliário característico da casa senhorial que foi em tempos, o uruguaio Alejandre Cesarco reflecte, em vídeo, sobre a disparidade entre discurso e pensamento.

Como seria de esperar, é no Fórum que está o grosso da exposição. Da selecção portuguesa, que inclui aqui obras da dupla Musa Paradisíaca, Pedro Barateiro, Vasco Araújo, Fernanda Fragateiro e da dupla de arquitectos Francisco e Manuel Aires Mateus, poderá dizer-se que não surpreende – tanto mais que a maioria das peças já foi vista noutros locais , exceptuando a escolha feliz da maqueta do nunca realizado Museu de Arquitectura pelos dois últimos, e a instalação/performance dos Musa, que joga eficazmente tanto com a percepção háptica do lugar como com as tradições artesãs do Alentejo.

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Beatriz Gonzalez
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Carla Filipe

As demais peças, criadas por 14 artistas oriundos de uma multiplicidade notável de latitudes e longitudes, desde a Europa, o Médio Oriente ou a África do Sul até às duas Américas, denotam também uma extensa variedade de linguagens e preocupações, tendo todos em comum, por um lado, esse entendimento contextual, ético ou interventivo que constitui hoje uma das grandes vertentes da prática artística. Latifa Echakhch, por exemplo, uma marroquina nascida em 1974, desfaz o interior de tapetes de oração tradicionais, deixando apenas visíveis a ourela e as franjas, retirando-lhe a função principal e destacando a “percepção como modo frequentemente preconceituoso de olhar a realidade”, nas palavras da curadora. Ou a instalação da polaca Alicja Kwade, um relógio de parede que gira ao ritmo da passagem do tempo, enquanto os ponteiros se mantêm imóveis, numa proposta de recriação do tempo da contemplação no museu, que não coincide, de todo, com a percepção do tempo do trabalho, por exemplo.

Na realidade, como sempre sucede nestes casos, as peças mais interessantes são aquelas que se fogem da leitura literal do tema da exposição, alargando-a e complexificando-a até nos convocarem para a nossa interpretação pessoal do tema. Como o cavalo de Tróia dos Futurefarmers (This is not a trojan horse), o notável vídeo de Guido van der Werve (Nummer acht. Everything is going to be allright), ou o filme de Candice Breitz (The character), já na fronteira entre a obra de arte e o cinema documental. Muitas das peças presentes, de resto, parecem levar aos limites possíveis essa definição de arte que hoje é apenas sociológica, tocando, por exemplo, o trabalho de investigação de natureza académica ou a exaltação do conceito, em detrimento de um “quase nada” material que teima em não desaparecer (Anne Collier, Barateiro ou Jeppe Hein, por exemplo).

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Jeppe Hein
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Anne Collier e Vasco Araújo

Nitidamente, num aspecto, pelo menos, esta exposição cumpre o seu propósito: o de se apresentar como um manifesto, traduzindo não apenas uma futura linha programática como o próprio gosto da curadora. Nesta sequência, anunciam-se, já para o ano em curso, individuais de Gabriela Albergaria, Joachim Koester e Daniel Blaufuks.

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Guido van der Werve
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Pedro Barateiro

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