Clássico, como só ele

Apesar de se mover também na criação literária, nos estudos da literatura grega e no ensaísmo, Frederico Lourenço obteve o maior reconhecimento como tradutor muito ligado a uma linhagem da tradição humanista.

Se a literatura grega tem, como elemento original, o “entusiasmo excêntrico”, e o “fogo do céu”, Frederico Lourenço, apesar de habitar profundamente essas paragens para as trazer até nós como um tradutor-mensageiro (mas também como helenista, num plano mais estritamente universitário) parece um edifício de harmonia e equilíbrio apolíneos. Na nossa comunidade dos tradutores, ele ocupa uma posição muito singular porque escolheu defrontar-se com os textos fundadores: a Odisseia, a Ilíada, a Bíblia. A função humanista da tradução, entendida à maneira clássica, cumpre-se nestes grandes empreendimentos que Frederico Lourenço realizou e pelos quais tem sido aclamado. Uma aclamação, aliás, que precisaria às vezes de ser complementada com uma discussão crítica, promovida pelos seus pares. Essa falta é flagrante na recepção da tradução da Bíblia grega, que devia fornecer matéria para debate, o que dificilmente pode ter lugar num país como o nosso, em que sempre se praticou muito mais o catolicismo de catequese do que a leitura bíblica e a reflexão teológica.

Na pequena constelação dos tradutores e estudiosos da literatura da Antiguidade clássica, Frederico Lourenço ganhou um grande destaque na esfera pública, nos meios profanos, como este prémio que agora lhe foi atribuído vem confirmar. E o seu nome é certamente o primeiro que ocorre quando pensamos na razoável vitalidade a que assistimos nós últimos anos, no campo da edição, de traduções dos clássicos gregos e latinos. Mas seria muito injusto achar que ele é o único astro da constelação (e seria justo, neste momento, fazer aqui alusão à editora de Frederico Lourenço, os Livros Cotovia, e àquele que esteve à frente da editora, o falecido André Jorge). O mundo dos estudos clássicos e dos respectivos departamentos universitários vive às vezes à beira da liquidação, mas tem tido uma actividade tão produtiva e necessária que merece ser exaltada. O nome de Frederico Lourenço serve também, de algum modo, de emblema e embaixador.

Mas o tradutor da Bíblia, de Homero, de alguma poesia grega e de duas tragédias de Eurípides não teria certamente conhecido o reconhecimento público para além do território universitário se não fosse alguém que se move entre várias artes, línguas e disciplinas. Recordemos que ele se estreou na edição literária com um romance, que seria o primeiro de uma trilogia; e que também publicou um livro de poesia. Mas a faceta pública que se sobrepôs foi a do tradutor: coisa rara, já que a tradução é muitas vezes vista como um ofício secundário. Solicitado a falar do seu método enquanto tradutor, Frederico Lourenço nunca se alongou muito em questões de tradutologia. A teoria especulativa da tradução parece nunca o ter entusiasmado muito. O que ele sempre sublinhou foi o seu amor pela letra, pela palavra, a sua philo-logia. Frederico Lourenço é um verdadeiro filólogo e poderia, aliás definir a tradução, à maneira de Schlegel, com um “mimo filológico”. A imagem que ele cultivou nas muitas entrevistas que deu (e ninguém lhe poderá apontar a falta de perícia no diálogo com os media) é o de alguém que vive desde a infância em estado de Babel, movendo-se entre línguas e entre artes. Mas sempre concedendo um privilégio ao clássico e ao apolíneo. 

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