Civilização e barbárie

Por estes dias, muito se tem insistido numa velha dicotomia, irredutível e obstinada como um quisto endurecido: civilização e barbárie. Nietzsche e Burckhardt foram talvez os primeiros a invalidar a pertinência desta oposição, quer para uma teoria da cultura entendida num plano sincrónico, quer para uma periodização hierárquica da história. A grande tragédia do século XX não só lhes deu razão como elevou a uma condição hiperbólica, antes inimaginável, a fatal integração da barbárie no interior de toda a civilização. Tal oposição, hoje tão proclamada, corresponde a uma visão idealista e cumulativa da “história do espírito”, à maneira de Hegel. Mesmo quem, noutras circunstâncias, não quer ouvir falar de dialéctica, surge agora completamente rendido ao processo dialéctico e ao evolucionismo na história das ideias: é isto que significa a afirmação muito comum de que a barbárie — aquela com que fomos recentemente confrontados — é o resultado de duas faltas: a da secularização e a dos valores do Iluminismo (a crítica, a razão, o progresso, a universalidade, o cosmopolitismo). Ora, o que esta maneira de pensar desconhece é precisamente aquilo que o historiador da arte e da cultura Aby Warburg (1866-1929) designou como uma fundamental esquizofrenia: a civilização está continuamente em luta contra o seu pólo demónico (traduza-se assim, e não como “demoníaco”, o dämonisch), num conflito trans-histórico, tipológico. E este confronto permanente entre tensões bipolares é aquilo a que Warburg chamou “a tragédia da cultura”. A tragédia vem do facto de nenhuma conquista da razão ser definitiva, por mais que tenhamos passado pelo Iluminismo e continuemos a tê-lo como referência. Não há uma dicotomia civilização/barbárie porque são os dois pólos de um mesmo processo, aquele que nos obriga a uma luta perene, sempre a recomeçar, porque “é preciso em cada momento salvar Atenas de Alexandria”. Uma Crítica da Desrazão Pura era uma exigência do psico-historiador Warburg, esse genial esquizofrénico que interpretou a história da cultura ocidental em chave autobiográfica. Se acreditarmos na pertinência e no valor de instrumento analítico da dicotomia civilização/barbárie, se achamos que ela nos é útil nas circunstâncias actuais, como podemos ler hoje as Considerações de um Impolítico, onde Thomas Mann, no momento da Primeira Guerra Mundial, vituperou exacerbadamente a “civilização”, defendendo, contra ela, a cultura (isto é, a Kultur)? Civilização era, para o Thomas Mann dessa época (o nazismo levou-o a alterar as suas posições) um complexo de coisas que ele considerava execráveis: o espírito das Luzes, a democracia, o internacionalismo, a domesticação, o cepticismo, a dissolução do espírito nacional. Daí o ter reclamado a guerra, “por mais que possa parecer aventuroso, selvagem, sanguinário, tremendo”. O que era preciso era salvar a Kultur, não permitir o triunfo dessa corja a que ele chamava os “literatos da civilização” (entre os quais se contava o seu irmão inimigo Heinrich Mann). Para finalizar, dando um salto muito mais pequeno do que parece, eis uma curta história. O poeta russo Mandelstam, que morreu no Gulag, terá dito um dia à sua mulher: “Não nos devemos queixar, em nenhum outro lugar se respeita tanto a poesia: até se mata por causa dela”. Continuamos confrontados com o mesmo problema: vem o ódio e a chacina obrigar-nos a ver que, afinal, é coisa séria e profunda o que, com ligeireza, vamos condenando à pura esterilidade da cultura — da nossa, não daquela que Thomas Mann reclamava contra a civilização. 

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