Cinco milhões para renovar a Sé de Lisboa porque há ainda muitas “lições nas pedras que sobram”

As pedras que sobram são as dos claustros e as que as escavações arqueológicas deixaram a descoberto. Igreja, Estado e Bruxelas vão custear um projecto que só deverá arrancar dentro de “um ano, ano e meio” e que inclui um museu e uma porta nova.

Será no claustro inferior a intervenção mais relevante
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Será no claustro inferior a intervenção mais relevante Patrícia Martins
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As escavações arqueológicas começaram na década de 1990 Patrícia Martins

Cá fora, filas de turistas em trânsito e um engarrafamento com táxis e tuk tuks. Lá dentro, guias com bandeiras da Polónia conduzem dezenas de visitantes apontando para pinturas e castiçais, para capelas e túmulos. Ouve-se falar em várias línguas e o ambiente assemelha-se ao de uma estação de comboios. Só faltam avisos de partidas e chegadas. Recolhimento é coisa que ali parece completamente impossível. É por isso que, quando se percorre a Sé de Lisboa numa tarde de Verão, mesmo que seja num dia de semana, é difícil imaginá-la como uma igreja aberta ao culto, onde ainda se celebram baptizados e casamentos e há festa no Natal e na Páscoa. Como será quando as ruínas arqueológicas tiverem o seu centro de interpretação a chamar mais gente? Estará o patriarca de Lisboa disposto a trocar uma igreja por um museu?

D. Manuel Clemente garante que não será preciso chegar a tanto e que, apesar da pressão turística, a sé continua a ter uma comunidade dinâmica que acompanha o calendário litúrgico. Restaurar os claustros, musealizar as ruínas e criar um arquivo para a Igreja de Santa Maria Maior (o outro nome da sé), tudo previsto no projecto de revitalização deste monumento nacional apresentado ao fim da tarde de terça-feira, não trará novos problemas, pelo contrário, resolverá alguns. Nomeadamente os que dizem respeito à limpeza e conservação do edifício que começou a ser construído no século XII, que foi atingido por três sismos e incêndios e que, na sequência destas catástrofes, foi sendo reinventado.

Esta igreja, lembrou D. Manuel Clemente na cerimónia em que a primeira fase do projecto de recuperação integral foi dada a conhecer, na presença do secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, e de membros da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e do Cabido da Sé, guarda mais de 2500 anos de história – o território em que está implantada é ocupado desde a Idade do Ferro – e tem um enorme valor simbólico e identitário.

Para o cardeal patriarca continua a ser um “espaço vital de memória” que importa proteger, em nome do monumento, primeiro, mas também em nome da cidade de Lisboa. “Sou bispo desta diocese e, por isso também, este é o meu lugar”, sublinha, lembrando que o edifício, como provam as escavações arqueológicas, tem também grande actualidade: “Hoje somos um país de muitas proveniências. A sé mostra-nos que sempre fomos.”

O plano estratégico de recuperação da Sé de Lisboa está previsto e deverá dar “novo fôlego ao projecto da Rota das Catedrais”, disse aos jornalistas João Carlos Santos, subdirector-geral da DGPC, organismo que coordena a intervenção orçada em cinco milhões de euros, um projecto do arquitecto Adalberto Dias. De acordo com Barreto Xavier, dois milhões serão assegurados por fundos europeus e os restantes três virão dos cofres do Estado e da Igreja, em parcelas ainda sujeitas a negociação.

Também não se sabe ainda quando arrancarão as obras, que têm uma duração prevista de 18 meses. Defende o secretário de Estado da Cultura que a captação de verbas de Bruxelas e o valor da obra, que exige o lançamento de morosos concursos internacionais, explicam que os trabalhos só possam começar dentro de “um ano, ano e meio”.

A arquitectura

O projecto de Adalberto Dias vai devolver ao claustro inferior o seu pátio, levantado para que os arqueólogos pudessem trabalhar e pôr a descoberto os vários níveis de ocupação daquele pequeno território em que Santa Maria Maior foi construída, muito provavelmente sobre uma mesquita. Também vai permitir instalar, no claustro superior, o arquivo da sé. A ligação entre os dois claustros será assegurada por escada e elevador e, para que o acesso ao museu das ruínas seja mais fácil, vai ser aberta uma porta para a Rua Cruzes da Sé.

A intervenção mais relevante, diz o arquitecto, é a do claustro inferior, muito afectado pelo incêndio que se seguiu ao terramoto de 1755, que deixou a sé parcialmente destruída, depois de a torre sul ter desabado sobre a nave principal e o altar-mor.

“Vamos construir um piso a cobrir as ruínas arqueológicas”, explicou o arquitecto. “Será uma só laje sem apoios centrais para não interferir.” Quase no centro geométrico do pátio deverá surgir uma “fonte da vida”, um espelho de água de cerca de 2,5X2,5 metros, que faz referência aos jardins do Antigo Testamento: “Assim, o claustro da sé vai retomar as suas verdadeiras dimensões arquitectónicas, simbólicas e espirituais.”

A intervenção – sobretudo a valorização das ruínas que hoje parecem quase abandonadas, cujas escavações começaram em 1990 e terminaram em 2010, chegando a estar vários anos paradas – é uma ideia antiga e já passou por vários acordos de parceria entre instituições. Apesar do historial de recuos, D. Manuel Clemente acredita que se está hoje em condições de avançar no sentido da valorização daquele que define como “um espaço cheio de lições nas pedras que sobram”: “Gosto de acreditar activamente nas coisas e não vou simplesmente ficar à espera que isto aconteça – vou lembrar muito.”

Sempre a memória

No centro do novo plano de revitalização vai estar a arqueologia. A avaliar pelos artefactos recuperados pelas escavações que desde 1995 contam com a arqueóloga Alexandra Gaspar, Lisboa tem um passado cosmopolita, e isto muito antes de os Descobrimentos a terem transformado na capital de um império. “Recuperámos artefactos de importação, de uso doméstico em épocas distintas”, diz ao PÚBLICO Gaspar, explicando por que razão a sé é tão especial quando se fala de arqueologia em Lisboa: “Aqui conseguimos ver muito bem a sucessão de ocupações da cidade. E aqui temos também uma rua romana rara – há outra, mas não está musealizada – e o único edifício islâmico público de Lisboa.”

A arqueóloga refere-se à estrutura de meados do século XI que faria parte de uma mesquita. “Não temos ainda certezas, mas, dado o tamanho, não há dúvidas de que seria um edifício para uso público.” Claramente identificados estão a rua e o sistema de saneamento romanos da primeira metade do século I – foi num dos esgotos, aliás, que se encontrou o chamado “tesouro”, composto por jóias e moedas islâmicas, muitas delas almorávidas (início do século XII, contemporâneas da conquista da cidade por D. Afonso Henriques), que será exposto no futuro museu , a cisterna medieval do reinado de D. Dinis e até uma cozinha. “Por cima da cozinha romana há um pavimento islâmico e sobre ele as fundações dos claustros”, diz, dando exemplos das camadas que é preciso atravessar para contar a história da sé.

Alexandra Gaspar e Ana Gomes, a outra coordenadora científica dos trabalhos, voltarão a escavar quando começarem as obras agora anunciadas. Vão dedicar-se à zona sul onde o projecto de Adalberto Dias prevê a instalação do núcleo museológico. Gaspar garante que há ainda muito por revelar e não esconde que gostaria de localizar mais vestígios do edifício islâmico e de encontrar elementos que permitam identificá-lo como uma mesquita. “Também era bom que conseguíssemos achar uma rua romana ortogonal à que já temos porque isso permitia estimar com maior rigor a dimensão dos quarteirões da cidade na época.”

A sé, não se cansa de sublinhar o cardeal patriarca, é uma caixa de memórias: “Estas coisas interessam-me muito. As memórias das pessoas, as dos lugares. E aqui há muitas das duas.”

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