Cinco estrelas de uma outra ribalta

Todos os anos se escolhem na área da música os melhores discos, concertos, vídeos, enfim, o que justifica (e premeia) a criação e alimenta a indústria. Porém, a par do que surge nessa ribalta (onde o Cante alentejano se tornou Património da Humanidade e Carlos do Carmo recebeu um Grammy Latino pela sua carreira), há outras coisas que ficam na memória pela sua singularidade. Aqui ficam algumas.

Comecemos por dois projectos, um americano e outro português: The 78 Project Movie e Projecto 675. O primeiro, mostrado em Outubro na secção Heart Beat do Doclisboa’14, partiu de uma ideia deveras extraordinária: percorrer a América gravando directamente em vinil e a 78 rotações, num gravador de discos Presto dos anos 1930, canções tradicionais em vozes anónimas e outras nem tanto (também gravaram Rosanne Cash, a filha mais velha de Johnny Cash, ou Richard Thompson, entre outros). O processo, que recria as “peregrinações” de Alain Lomax em busca de registar a memória sonora da América, deixa maravilhados participantes e espectadores. Gravar um disco, em directo, e em seguida ouvi-lo como se tivesse saído da fábrica não se compara a qualquer experiência digital. Quem quiser saber mais sobre esta enternecedora epopeia tem um site à disposição: www.The78Project.com.

O segundo é um disco de um jovem grupo, Lavoisier (Patrícia Relvas e Roberto Afonso, ela nascida na Guarda, ele em Lisboa), que, inspirado nas recolhas de Giacometti (e há aqui um interessante paralelo com Lomax), gravou com a preciosa colaboração do mítico técnico de som José Fortes um disco com temas tradicionais em versões de uma modernidade cativante (como Sra. do Almortão, Maria Faia, Alecrim, A machadinha, a par de uma versão de Acordai, de Lopes-Graça). A qualidade do registo é assombrosa e o título, Projecto 675, foi tomado do dossier que Fortes abriu para estas gravações. Vale a pena ouvir os Lavoisier, que usam tal nome para provar que tudo se transforma — e, no caso deles, bem.

O terceiro projecto é tão insólito quanto gratificante. A cantora de jazz portuguesa Paula Oliveira quis gravar um disco de standards com três músicos dos primórdios do jazz que se faz por cá. E reuniu este trio: Bernardo “Binau” Moreira (contrabaixo), António José de Barros Veloso (piano) e Manuel Jorge Veloso (bateria). Alguns não tocavam há décadas, até porque têm outras actividades, mas o seu regresso foi uma chama que se acendeu, entre todos, a bem da nossa memória e do jazz. Com tal quarteto, eles e ela, gravaram nada menos do que 12 dos mais talentosos músicos da nova geração jazzística. O resultado, gravado em 2 CD e um DVD-documentário, embalados numa caixa em formato de LP, está apenas à venda na casa editora, ou seja, no Hot Clube de Portugal. Chama-se Just In Time e é uma experiência a não perder.

O quarto projecto já teve apresentação pública, primeiro na Festa do Avante! e depois já com maior segurança no Jardim de Inverno do Teatro Municipal de São Luiz, em Lisboa, a 29 e 30 de Novembro. É o trio de Pedro Jóia, que ele fez questão de apresentar logo a seguir a concertos a solo onde teve Ricardo Ribeiro como convidado especial. Pedro Jóia (guitarra), João Frade (acordeão) e Norton Daielllo (baixo eléctrico) mostraram, em palco, não apenas a sua excelência como músicos, mas também o perfil de algo que ainda há-de fazer história e que passa pela recriação de temas da tradição popular rural e urbana em leituras instrumentais inspiradíssimas. Há-de haver disco, um destes dias.

O quinto projecto é a transformação de poemas de Maria Alberta Menéres em canções, inseridas num livro-disco especial. Chama-se Conversas Com Versos e traz, além da reedição do livro homónimo de 1968 (um dos muitos que ela publicou para o universo infanto-juvenil), um CD com 11 desse poemas transformados em canções, com as letras (os poemas ajustados ao canto) e respectivas partituras. Não só: o livro reúne três gerações da mesma família: quem canta é a filha Eugénia Melo e Castro (que aqui assume o diminutivo “Géninha”, mais que justificado no contexto) e quem ilustra o livro é Mariana Melo, filha de Eugénia e neta de Maria Alberta Menéres. Um encontro familiar efusivo, que contou, na música, com o labor de Eduardo Queiroz e participações, entre outros, de Ney Matogrosso e Lino Krizz. É um trabalho precioso que vem juntar-se ao lote (pequeno, mas bom) dos que privilegiam a inteligência das crianças.

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