Chegou tarde a carta de Sartre que poderia ter mudado o Nobel

Meio século depois, a Academia Sueca abriu os arquivos relativos ao Nobel da Literatura de 1964 – aquele que Jean-Paul Sartre venceu e recusou.

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Jean-Paul Sartre e a companheira, Simone de Beauvoir, no Rio de Janeiro nos anos 1960 AFP

Era a oitava vez que o nome de Jean-Paul Sartre estava na mesa. Depois de em 1957 Jacques Scherer ter proposto pela primeira vez o filósofo, romancista e dramaturgo francês como candidato ao Nobel da Literatura, todos os anos o mesmo nome se ouvira em Estocolmo. E cada vez mais alto. Então, a 17 de Setembro de 1964, o Comité decidiu, por fim, que o autor de A Náusea e À Porta FechadaHuis Clos, no original – seria o vencedor. Assim, chegou tarde a carta que Sartre enviou em meados de Outubro a pedir que não o nomeassem e a avisar que recusaria o prémio caso tal acontecesse, revelam os arquivos agora desembargados pela Academia Sueca, confirmando a narrativa desde sempre associada ao Nobel do “intelectual total”.

Encerrado 2014, terminaram os 50 anos de sigilo previstos pelo regime geral de arquivos. E o diário Svenska Dagbladet, que terá consultado o dossier da que é tida como a primeira verdadeira recusa de sempre do Nobel da Literatura, conta ainda como a decisão de entregar o prémio a Sartre foi contra a vontade do então recém-nomeado secretário permanente, Karl Ragnar Gierow, que sugeriu o russo Mikhail Sholokhov como primeira escolha, e as “reservas” do presidente do comité, Anders Osterling, que considerava o existencialismo sartreano “uma marca registada um tanto duvidosa” e observava com ambivalência a forma como a “personalidade forte e independente” de Sartre se tornara “um poder espiritual na Europa” de então, acreditando, porém, ser a sua influência “reduzida” em anos recentes.

Face a um contexto em que outro dos membros do comité – Eyvind Johnson – se opunha à nomeação, querendo premiar antes o poeta anglo-americano W.H. Auden, talvez se a carta de Sartre tivesse chegado mais cedo a decisão do comité tivesse sido outra, insinua o Svenska Dagbladet, afirmando que haveria, pelo menos, “mais um argumento para não distinguir Sartre”.

O jornal diz que a 22 de Outubro, no momento da votação final que antecedeu o anúncio mundial, Gierow ainda aludiu à carta de Sartre e à resposta com o pedido de reconsideração que entretanto remetera ao escritor. Talvez tenha aludido também ao anúncio, dois dias antes, da Gallimard, a editora de Sartre.

Citada pela imprensa internacional, a 20 de Outubro a Gallimard fez saber que, “por princípio”, Sartre, então com 59 anos, nunca aceitava prémios, “fossem um saco de batatas ou o Nobel”. Depois de já antes ter recusado a Legião de Honra francesa, o escritor, por seu lado, recusou prestar declarações públicas. Nesse mesmo dia, partiu de Paris para Argel, onde ficaria até meados de Novembro. A edição europeia de 21 de Outubro do New York Herald Tribune diz que alguns dos seus amigos estariam ainda a tentar convencê-lo a aceitar o prémio - até por motivos financeiros. Mas o jornal sublinha logo de seguida que não havia qualquer indício de que Sartre viesse a reconsiderar.

O último parágrafo da notícia recorda como, até então, o Nobel fora apenas recusado “em circunstâncias muito invulgares”: “O russo Boris Pasternak foi forçado [pelas autoridades do seu país] a declinar o prémio em 1958. O dramaturgo britânico George Bernard Shaw primeiro anunciou planos de o recusar mas decidiu aceitá-lo após negociações com diplomatas suecos. O pacifista alemão Carl von Ossietzky foi compelido pelos nazis a recusar.”     

Sartre mostrou-se irredutível. E no dia do anúncio da sua vitória fez uma declaração à imprensa sueca que o Le Monde publicou numa tradução para francês revista pelo próprio escritor. Nessa declaração, Sartre explicava como a 15 de Outubro soubera pelo Figaro Littéraire que a Academia teria o seu nome sob consideração e, por isso, decidira contactar Estocolmo, achando que a decisão não estava ainda tomada. “Como expliquei na minha carta à Academia, os meus motivos não se prendem nem com a Academia nem com o Nobel em si próprio”, disse Sartre.

Estranhamente, o Svenska Dagbladet não cita directamente a carta enviada por Sartre à Academia nem explica se ela está disponível e se a consultou. Até à hora de fecho desta edição também não foi possível entrar em contacto com os serviços da Fundação Nobel, encerrados em dia de feriado nacional. A imprensa internacional que trabalhou a partir da notícia do Svenska Dagbladet cita a declaração pública de 22 de Outubro, traduzida para inglês a partir do Le Monde e publicada nos Estados Unidos pela New York Review of Books. Nela, Sartre aponta “dois tipos de motivos: pessoais e objectivos”. E explica que “assinar Jean-Paul Sartre não é a mesma coisa que assinar Jean-Paul Sartre, vencedor do Nobel”.

O escritor, que declarara o marxismo como “o horizonte inultrapassável do nosso tempo”, apontava um exemplo concreto: “As minhas simpatias pelos revolucionários venezuelanos implicam-me apenas a mim, enquanto se Jean-Paul Sartre o laureado apoia a resistência venezuelana implica todo o Prémio Nobel como instituição. O escritor deve, assim, recusar deixar-se ser transformado em instituição, ainda que tal ocorra sob as mais honrosas circunstâncias, como é o caso.”

Ressalvando não haver na sua atitude qualquer crítica implícita a anteriores vencedores, Sartre aponta também “razões objectivas”: “A única batalha hoje possível na frente cultural é a batalha pela coexistência pacífica entre duas culturas, a do Leste e a do Ocidente. […] As minhas simpatias vão inegavelmente para o socialismo e aquilo a que se chama bloco de leste […] é por isso que não posso aceitar uma honra concedida por autoridades culturais, nem as ocidentais nem as de leste”. A crítica ao comité, porém, não tardaria na sequência das suas palavras: apontando Neruda, Louis Aragon e Sholokhov, Sartre sublinhou que, sem os premiar, o Nobel se perfilava, à época, “objectivamente”, como “uma distinção reservada aos escritores do Ocidente ou aos rebeldes de leste”.

Disse ainda que se teria mostrado “agradecido” pelo Nobel caso este lhe tivesse sido entregue durante a guerra na Argélia, depois de ter sido um dos signatários do Manifesto dos 121, no início de Setembro de 1960, assinalando a radicalização da contestação dos intelectuais de esquerda ao Estado francês. Nesse caso, o Nobel “ter-me-ia honrado não apenas a mim, mas também a liberdade por que estávamos a lutar”.  

O “intelectual total” não terminava sem lamentar a perda das 250 mil coroas suecas do prémio (hoje oito milhões de coroas - cerca de 877 mil euros). Faz o que pode ser visto como uma pouco velada sugestão à Academia de as entregar a quem ele as entregaria, se pudesse: ao Movimento Anti-Apartheid, fundado apenas cinco anos antes em Londres. “Não se pode pedir a ninguém que, por 250 mil coroas, renuncie aos princípios que não são apenas seus, mas partilhados por todos os seus camaradas.”  
 

 

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