Charlot às voltas na tumba para um comeback em Veneza

O realizador Xavier Beauvois deixa que um facto verídico – o roubo do caixão de Chaplin, dias depois da sua morte em 1977 – seja profanado pelo espírito do clown: La Rançon de la Gloire.

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La Rançon de la Gloire (competição) está possuído pelo espírito do clown dr

É a solidariedade dos maltrapilhos, a cumplicidade dos clowns: Charlie Chaplin, depois de morto, a fazer um comeback no Lac Léman, inspirado e a inspirar os dois pobres diabos que profanaram o seu túmulo.

A história inicial é verdadeira: Charlot morreu no Natal de 1977 e dias depois o seu caixão foi desenterrado da sepultura do cemitério de Vevey, Suíça, onde vivia com a mulher Oona e oito filhos; durante alguns dias, os ladrões foram desastrados negociadores do resgate.

O realizador, e actor, Xavier Beauvois deixa então que este facto verídico seja profanado pelo espírito do clown, como se as pás que desenterraram o caixão de Charlot estivessem em comunicação mediúnica com as pás de uma fotografia em que o próprio Charles Spencer Chaplin, nos primeiros anos do século XX, cava as fundações do seu estúdio.

La Rançon de la Gloire (competição) está possuído pelo espírito do clown (será Chaplin aquele macaco que às tantas foge do circo?). O compositor Michel Legrand é conivente, retrabalhando a música de Limelight (1952) para incentivar Benoît Poelvoorde e Roschdy Zem a fazerem figuras de palhaço (literalmente, porque um circo acaba por se materializar na fantasia que Beauvois construiu).

Os dois, Poelvoorde e Zem, o primeiro sempre pronto a levantar voo, o segundo preso ao chão pela gravidade com que olha a vida, são o par de uma hipótese de melodrama proletário com criança no meio. Melodrama que Beauvois trata com uma dignidade comovente e com o respeito por uma ética proletária que não parecem ser já deste mundo (cinematográfico).

Mesmo que Beauvois seja menos capaz, depois, de acompanhar o fluxo burlesco e fantasioso, onde quase sempre sublinha e se entusiasma demasiado (de novo, os acordes de Michel Legrand têm culpa). Mas valeu por ter acreditado no espírito de Charlot.

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