Cenas do paraíso

Este é um pintor que andou por Itália mas que nunca se esqueceu que era flamengo. Com uma clientela rica e uma personalidade exuberante, Jan Gossaert criou uma obra em que há muita escultura e muita carne. Adão e Eva está no Museu de Arte Antiga até 6 de Setembro.

<i>Adão e Eva</i> (c. de 1510), de Jan Gossaert, pertence ao Museu Thyssen e é a nova Obra Convidada
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Adão e Eva (ca. de 1510), de Jan Gossaert, pertence ao Museu Thyssen e é a nova Obra Convidada Cortesia: Museu Thyssen- Bornemisza
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Gravura (1504) de Albrecht Dürer que serve de referência directa à pintura de Gossaert. A que está agora em exposição no MNAA é uma cópia do século XVII Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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Tríptico da Sagrada Família (1501-1507), é um exmplo do maneirismo de Antuérpia. Hoje atribuída a um mestre flamengo desconhecido, era até há cinco anos considerada uma obra de Gossaert Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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São Jerónimo Penitente (1531), de Jan Sanders van Henessen Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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Adoração dos Magos (1520-1525), de Gregório Lopes e Jorge Leal Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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Anunciação (1515), atribuído a Jorge Afonso (atrib.) Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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Virgem com o Menino (1526-1527), de Jan van Scorel Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga/DGPC
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Tríptico da Vida de Cristo (1540-1550), de Pieter Coecke van Aelst. A influência de Jan Gossaert é evidente no painel central, em que Cristo é descido da cruz DR

Adão e Eva já depois do pecado original. Jan Gossaert pinta-os assim: olham-se, serenos, separados pela serpente e rodeados de símbolos (plantas que evocam a Virgem, corais contra o veneno…). Eva tem uma maçã em cada mão, Adão aponta para um caminho na paisagem que deverão percorrer ao deixar o paraíso. Os dois corpos nus, com músculos e contornos bem definidos, parecem convocar a escultura para um domínio que não é o seu. Se o fundo não existisse, seria ainda mais fácil imaginá-los de mármore ou de alabastro. Na pintura deste artista flamengo há sempre muito volume, uma boa dose de erotismo e um compromisso entre o Norte e o Sul da Europa do Renascimento. Sem concessões.

“Quando olhamos para esta pintura não temos dúvidas de que é do Norte, mas reconhecemos nela traços do Sul. Sendo um pintor da figura humana, e tendo visto muita da escultura clássica que marcava o Renascimento italiano, Gossaert faz cair sobre ela o peso do corpo. E do corpo nu”, diz Joaquim Caetano, historiador de arte e conservador do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). “Ele é primeiro – e sempre – um pintor flamengo, nunca um flamengo a pintar à italiana. E isto sem nunca deixar de reconhecer – e de mostrar que o reconhece – que aprendeu muito com os artistas do Sul quando andou por Itália.”

Adão e Eva (c. 1510) é um óleo que pertence à Fundação Thyssen-Bornemisza de Madrid e está agora em exposição no MNAA, e até 6 de Setembro, a propósito do programa Obra Convidada, que desde 2013 tem feito passar por Lisboa obras de vários museus internacionais. Ao lado desta pintura de Jan Gossaert (1478-1536), também conhecido como Jan Mabuse, por causa da pequena cidade onde nasceu, vai estar a cópia de uma gravura de outro digno representante do Renascimento do Norte da Europa – para muitos o mais digno de todos –, o alemão Albrecht Dürer (1471-1528). O tema é o mesmo e vê-las juntas ajuda a explicar a sua genealogia e a fazer o retrato de uma época de contaminações.

Muito próximas no tempo – a gravura original do pintor alemão é de 1504, embora a exposta no MNAA seja uma cópia do século XVII – são um reflexo claro da influência que a arte e os artistas do Renascimento italiano tiveram no Norte da Europa. Mas isto sem que fossem capazes de anular, ou sequer esbater, as marcas mais distintivas da sua linguagem e, sobretudo, da sua maneira de fazer, da sua técnica. É por isso que Charles Darwent defendeu nas páginas do jornal inglês The Independent, a propósito da exposição que a National Gallery de Londres dedicou a Gossaert em 2011 (esteve no ano anterior no Museu Metropolitan de Nova Iorque, ambas comissariadas pela historiadora Maryan Ainsworth), que este Adão e Eva, como muitas outras versões do mesmo tema que o pintor fez ao longo da sua carreira de 30 anos, “é uma declaração de ‘flamenguice’, com o herói e a heroína modelados com aquela ênfase da luz sobre uma superfície pela qual a arte do frio Norte é famosa”.

Gossaert inspira-se nitidamente em Dürer, que como ele também estudara a fundo as esculturas grega e romana, e parte dos corpos de proporções perfeitas da antiguidade clássica, redescobertos pela renascença italiana, e dá-lhes na pintura uma versão “algo escandalosa, e de uma finesse atrevida”, escreve outro crítico britânico, Jonathan Jones (The Guardian), que garante que o artista recorreu ao tema de Adão e Eva como meio de explorar o nu num ambiente profundamente cristão que caracteriza a cultura – e a clientela – do Norte da Europa do seu tempo. E sem deixar de ser, por um momento sequer, um “pintor da carne”, um sensualista cujo maior talento é brincar com as possibilidades da nudez.

Percurso pelo MNAA

Nesta época, lembra Joaquim Caetano, o Norte da Europa está repleto de pequenas cortes em que pintores como Gossaert encontram coleccionadores com um gosto sofisticado e muito dinheiro, a clientela ideal. Pinturas com o tema e a dimensão deste Adão e Eva (56,5X37cm) são para usufruto privado, na intimidade, explica o conservador de pintura do MNAA, para mostrar apenas às pessoas mais próximas ou aos convidados que o dono da casa considera capazes de compreender as referências da obra e as citações que faz. “Esta é uma pintura para pequenas cortes feita por um pintor de corte. E feita para coleccionadores apuradíssimos.”

Ao longo da sua carreira, e começando com Filipe da Borgonha, filho bastardo de Filipe, o Bom, que acompanha a Itália em 1508 e 1509 numa embaixada de Margarida da Áustria (regente dos Países Baixos) ao Papa, Jan Gossaert conta sempre com o apoio de ricos mecenas e o facto de ser um “assalariado” – vive sempre de tenças, de pensões - faz com que tenha mais “disponibilidade de tempo e de cabeça para experimentar”. E experimentar é precisamente o que faz com esta sua primeira versão de Adão e Eva, tema que há época se chamava A Queda do Homem. O corpo nu, tratado sob influência de Dürer, dos mestres italianos e de esculturas clássicas como a do Apolo de Belvedere e a do Spinario, que chega a desenhar em detalhe, é aqui uma originalidade. Em 1510, as memórias de Roma deveriam estar ainda muito frescas na cabeça do pintor que, acabado de regressar a casa, se preparava, segundo Maryan Ainsworth, para mudar o curso da sua carreira e da própria pintura flamenga.

Para trás ficavam as influências de grandes nomes da pintura de Bruges - Jan van Eyck e Hans Memling – e um começo um tanto ou quanto “convencional”, ligado ao chamado maneirismo de Antuérpia, um estilo marcado por “composições atafulhadas, uma arquitectura fantástica, elegante, figuras de poses exageradas, panejamentos que se agitam e embelezamentos excessivos de toda a espécie”, explica a historiadora num texto escrito para as exposições de Londres e Nova Iorque.

É precisamente devido a este maneirismo de Antuérpia que o Adão e Eva do Museu Thyssen consegue, sem esforço, “conversar” com a colecção permanente de Arte Antiga. Por um lado, por causa de obras como o pequeno Tríptico da Sagrada Família (1501-1507), hoje atribuído a um mestre flamengo desconhecido mas que até às referidas exposições se julgava pertencer ao próprio Jan Gossaert. Por outro lado, há que levar em conta que o museu tem representados no seu acervo artistas que se inspiraram na sua pintura, como Jan Sanders van Henessen, Pieter Coecke van Aelst ou Jan van Scorel.

“Mas este maneirismo de Antuérpia também é importante para nós – e talvez esse seja o motivo mais interessante - porque é a arte que influencia os primitivos portugueses”, sublinha Joaquim Caetano, referindo-se a artistas como Jorge Afonso, Gregório Lopes e Francisco Henriques, todos no acervo do MNAA. “Nele há um gosto por poses e gestos artificiosos, pela arquitectura rica, pela sobreposição de decorações, pelos tecidos caros, tapeçarias e outros adereços de luxo que apontam para uma pompa de corte. Nesta época, em que pela primeira vez temos dinheiro, há muitas semelhanças entre a nossa corte e as do Norte.”

Um homem exuberante

O que é que a experiência de Gossaert em Itália introduz, afinal, no Renascimento do Norte e neste maneirismo de Antuérpia? “Sobretudo uma ciência fantástica da perspectiva. E também é dos primeiros a Norte a introduzir o tratamento escultórico das figuras e o nu na representação de temas religiosos mas, sobretudo, mitológicos. E faz isto tudo criando figuras de grande erotismo”, acrescenta o conservador de pintura do MNAA. Este tratamento vem-lhe da passagem por Itália, mas também da convivência com Conrad Meit, escultor da corte de Margarida da Áustria, com quem partilhava o interesse pela mitologia. “Sempre que olhamos para obras do Gossaert pós-viagem a Itália e pós-Meit, ou até para trabalhos de muitos dos seus seguidores, como o Van Henessen, temos a sensação de que a figura se pode destacar do fundo, tal é o seu volume. É como se tivesse sido feita fora da pintura e acrescentada mais tarde”, explica.

O que é também curioso na arte de Gossaert, e que neste Adão e Eva é já muito evidente, defende Caetano, é o compromisso que estabelece entre o gótico e o contemporâneo, entre aquilo a que o crítico Charles Darwent chama o “frio Norte” e o “quente Sul”. “Dürer fica de cabelos em pés com esta mistura que Gossaert faz e chega mesmo a dizer que nele a técnica é superior à ideia. Porque a técnica continua a ser flamenga e a ideia já deve muito ao Sul.”

Comparado com frequência ao pintor grego Apeles, aquele que terá retratado Alexandre, o Grande, Gossaert leva uma vida desregrada, segundo Karel van Mander (1548-1606), artista e poeta a quem chamam muitas vezes o Vasari do Norte, já que é famosa a obra em que reúne muitas biografias de pintores. Estranha este biógrafo que um pintor com uma personalidade tão exuberante, que chega até a empenhar um gibão que lhe oferece o imperador Carlos V, seja o autor de uma obra tão rigorosa. É precisamente Van Mander que reconhece desde logo que Gossaert é dos primeiros a trazer o nu para a pintura de história religiosa e de fábula, que é outra maneira de dizer pintura com temas mitológicos.

“O Gossaert está longe de ser o artista certinho, que se vende muito bem, ao contrário do Dürer, que se veste sempre como um nobre e que diz que sobre ele desceu a graça de Deus. O Dürer devia ser insuportável e o Gossaert um tipo com quem se podia conversar.”

O tema da queda do homem é recorrente na obra de Gossaert, que restringe muito a quantidade de pinturas religiosas que executa. “Nesta altura a especialização em determinado tema é uma arma para os artistas. É por isso que Gossaert faz vários Adão e Eva, muitos retratos e pinturas de pares mitológicos, em que é mais fácil trabalhar as pulsões eróticas.” Hércules e Dejanira, Hermafrodito e Salmacis, Neptuno e Anfitrite estão entre eles.

Mas esta cena do paraíso, que na paisagem de verdes e azuis da obra convidada do MNAA se revela profundamente devedora de pintores de Bruges como Gerard David e Joachim Patinir (há até quem acredite que não foi Jan Gossaert a pintá-la), permite-lhe tocar num tema que agrada a artistas e humanistas e que Albrecht Dürer é o primeiro a explorar a Norte. Explica Caetano que é com o pintor alemão que a representação de Adão deixa de ser apenas um problema teológico para passar a ser também artístico: “É que sendo o único homem criado directamente por Deus, as suas proporções tinham de ser nada menos que perfeitas. E onde é que se encontra essa perfeição? E como fazer este protótipo da humanidade criada por Deus? Pintar Adão, desenhá-lo, era uma grande responsabilidade.” Dürer e Gossaert sabiam-no bem.

 

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