O elefante na sala de estar

O ciclo "Terrorismo, representação", com um conjunto de filmes centrados nos anos 1960-1970, permite compreender melhor o que ocorreu na Europa quando esta foi abalada, no seu interior, por uma vaga sem precedentes de terror e morte.

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Homens de blusão caminham decididos, as mãos nos bolsos. Localizam a presa, abatem-na a sangue-frio. Dois, três, quatro tiros. A câmara detém-se depois sobre o cadáver, longamente. Dezoito homicídios nas ruas de Belfast, apresentados durante 39 minutos, sem diálogos nem explicações. Elephant, de Alan Clarke, denunciou em 1989 o manto de silêncio que caíra sobre os Irish Troubles, "o elefante na sala de estar" que todos teimavam em ignorar.

Sendo o filme que dá o mote ao ciclo "Terrorismo, Representação", só por ignorância ou má-fé se poderá dizer que esta iniciativa visa apresentar o terrorismo sob vestes exculpatórias ou até apologéticas. Na preparação desta retrospectiva, pensada durante três anos, os organizadores tomaram opções discutíveis e correram riscos nas escolhas feitas. Desde logo, aventuraram-se por um território onde a própria caracterização do conceito-base se afigura problemática e complexa. Em 1984, na primeira edição do clássico Political Terrorism, Alex P. Schmid dedicou mais de 100 páginas a analisar dezenas de definições de terrorismo; anos depois, em 2011, regressou ao tema num dos capítulos do monumental Routledge Handbook of Terrorism Research, dizendo-nos, no final, que continuava em busca de uma noção adequada, ao mesmo tempo suficientemente ampla para cobrir o fenómeno na sua imensa diversidade e convenientemente precisa para evitar confusões com outras formas de contestação ou de desvio à ordem convencional. Noutro trabalho de grande fôlego, o historiador Walter Laqueur concluiu não ser possível, ou desejável, apresentar uma definição de terrorismo. E, como nota Bruce Hoffman em Inside Terrorism (1998), existem ou existiram, inclusivamente, discrepâncias de vulto entre os conceitos usados pelos diversos organismos estatais norte-americanos: a noção de terrorismo do U.S. Code, em que se baseia o Departamento de Estado, não coincide com a utilizada pelo FBI e esta, por sua vez, é diferente da acolhida pelo Departamento de Defesa. Para complicar as coisas, durante muitos anos a imprensa ocidental, segundo Hoffman, procurou manter a todo o custo uma "neutralidade terminológica" na apresentação de certos actos, optando frequentemente por usar qualificativos como "extremistas" ou "fundamentalistas". Estudos levados a cabo sobre a representação do terrorismo nos media concluíram que, em muitos casos – e casos em que a marca do terrorismo era evidente –, se optou por designações alternativas: "guerrilha", "luta armada", "acção directa". Ou seja, também a imprensa contribuiu, a seu modo, para que o elefante passeasse despercebido na sala de estar, alimentado a "conspiração de silêncio" de que falou Eviatar Zerubavel no notável livro The Elephant in the Room. Silence and Denial in Everyday Live.

Noutras situações, diametralmente opostas, o termo "terrorista" foi usado deliberadamente e com intuitos de defesa do statu quo, o que tanto aconteceu com a imprensa britânica perante os atentados perpetrados em Israel por grupos radicais judeus (e.g., a explosão do Hotel Rei David, em 1946) como com as autoridades portuguesas relativamente aos "turras" africanos da Guiné, Angola e Moçambique. Grupos que, no final do marcelismo, iniciaram acções sistemáticas de luta armada, como a LUAR, a ARA ou as Brigadas Revolucionárias, recusavam totalmente o labéu de "terroristas", vendo-se a si próprios como seguidores dos métodos de "guerrilha urbana" que Carlos Marighella popularizara num célebre manual muito em voga naquela época. Ao discursar na ONU, em Novembro de 1974, Yasser Arafat definiu-se como "revolucionário", rejeitando que as acções da OLP pudessem ser tidas por "terroristas". A questão não era puramente vocabular ou conceptual: nas votações nas Nações Unidas, diversos Estados árabes, africanos e asiáticos ergueram-se contra a proposta do então secretário-geral, Kurt Waldheim, para condenar os atentados na Aldeia Olímpica de Munique com o argumento de que os povos que procuravam libertar-se da opressão tinham legitimidade para recorrer a todos os meios, incluindo o uso da força.

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A tolerância semântica atrás citada, que Hoffman e outros detectaram em publicações tão diversas como o New York Times, o Christian Science Monitor ou o Washington Post, mudaria radicalmente com os ataques do 11 de Setembro. E, nos nossos dias, classificar as atrocidades do ISIS como "terroristas" parece-nos até demasiado benévolo ou complacente.

Ainda assim, existe um tópico que gera consenso entre os que procuraram definir "terrorismo": em todas as caracterizações, o termo tem uma carga pejorativa e negativa, ponto que foi notado, por ex., por John Horgan em The Psychology of Terrorism. Eis uma razão suplementar para concluirmos que os organizadores desta retrospectiva – a que chamaram, sem eufemismos, "Terrorismo, Representação" – não pretenderam desculpabilizar os movimentos retratados e os seus protagonistas, mesmo quando nos apresentam obras mais ou menos "comprometidas" com eles, como Johnson & Co. and the Campaign Against Poverty, de Hartmut Bitomsky (1968), Red Army/PFLP: Declaration of War, de Masao Adachi e Koji Wakamatsu (1971) ou até um filme (aparentemente) lateral a esta temática: Bambule, de Eberhard Itzenplitz (1970), que ilustra o quotidiano de um reformatório para raparigas e a atmosfera sufocante e opressiva que o envolvia. Ulrike Meinhof participou na produção de Bambule e, sintomaticamente, o escritor Heinrich Böll disse que aqui se encontrava a chave para compreender a ideologia do Rote Armee. Na verdade, o Baader-Meinhof nasceu e medrou num caldo de cultura fortemente alimentado por uma retórica emancipatória em que a libertação sexual ocupou um lugar central, tal como é reconhecido pelos relatos memorialísticos de Tony Judt ou Ulrich Enzensberger (como escreverá o irmão deste, Hans Magnus Enzensberger, em Perspectivas da Guerra Civil, "mesmo os guerrilheiros e os terroristas dos anos 60 e 70 achavam importante justificar as suas acções"…).

A crítica aos reformatórios para raparigas enquanto "instituições totais", para usar o conceito de Goffman, desembocaria em experiências como a Kommune 2, onde a prática de actos sexuais entre crianças e entre crianças e adultos foi vigorosamente encorajada. Pode ainda citar-se o caso do colectivo do Kinderladen de Frankfurt, que incentivava os menores a afirmarem a sua sexualidade e a regredirem à fase anal, rejeitando o uso de fraldas e casas-de-banho, como orgulhosamente confirmou um responsável daquela instituição à Stern. Existiu mesmo uma tendência para o culto da pornografia a pretexto da emancipação feminina, realidade visível na revista Konkret, dirigida por Klaus Röhl, marido de Ulrike Meinhof, tendo esta sido, aliás, jornalista daquela publicação. Mais tarde, trabalhou no argumento e produção de Bambule. Quando o filme se encontrava pronto a ser exibido na televisão alemã, Ulrike foi detida pelo seu envolvimento na acção armada que libertou Andreas Baader da prisão. Bambule só seria apresentado ao público em 1994 e constitui um documento histórico de inegável valor para compreender a atmosfera em que se desenvolveu a luta armada na "Alemanha no Outono" (título de uma obra colectiva em que pontifica o nome de Fassbinder, e que será igualmente exibida).   

Na selecção dos filmes parece ter sido propósito dos organizadores não se deixarem "contaminar" pela visão do terrorismo que possuímos após o 11 de Setembro. O terrorismo islâmico do novo milénio está ausente, opção talvez questionável mas que se compreende dado tratar-se de uma retrospectiva que reclama um distanciamento que porventura ainda não existe. E, mais do que isso, exige material fílmico disponível e de qualidade, que não se confunda com a vaga de filmes de cariz comercial produzidos na sequência dos ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono.

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Relativamente a este tipo de filmes, que navegam à superfície e em que a abordagem do terrorismo é maniqueísta e epidérmica, torna-se mais fácil proceder a um levantamento dos discursos sobre o fenómeno. Assim, numa análise das representações do terrorismo no cinema americano, Thomas Riegler refere que, à excepção de casos esporádicos como Saboteur, de Hitchcock (1942), Hollywood apenas descobriu o terrorismo na década de 70. Nesse tempo, os filmes sobre o terrorismo integravam-se numa lógica de entretenimento, correspondendo a películas "de acção" centradas em duas figuras-tipo: os sequestradores sanguinários, com motivações ideologicamente pouco claras, que acabavam por ser dominados no final feliz por "lobos solitários", heróis que agiam isolados, por sua conta e (muito) risco. Na década seguinte, ocorrerá uma mudança significativa, depois de os Estados Unidos se virem confrontados com o sequestro dos funcionários da sua embaixada em Teerão e com os ataques de extremistas xiitas no conflito do Líbano. Nos anos 80, Hollywood dará prevalência aos "fanáticos religiosos" e, no auge do reaganismo e em plena Guerra Fria, aos "infiltrados vermelhos". Nos filmes dos anos 90 a atenção passou a centrar-se nas "novas ameaças", com películas apocalípticas que mostravam grupos terroristas com arsenais atómicos prestes a explodir na baixa de Manhattan. Uma vez mais, o 11 de Setembro introduziria uma mudança de perspectiva. Em todo o caso, um denominador comum à representação do terrorismo pela cinematografia comercial norte-americana, que percorre as três últimas décadas do século XX, prende-se não tanto com a caracterização dos "vilões" mas com o aval dado aos contra-terroristas para, também eles, agirem à margem da lei. Em Nighthawks, de 1981, o sinistro Wulfgar, cérebro da conspiração mortífera, afirma de forma cortante: "There is no security". O seu adversário, o polícia DaSilva, incarnado por Sylvester Stallone, segue pari passu a doutrina do "mal menor": as democracias ocidentais, frágeis por natureza, só conseguiriam defender-se de ameaças desta dimensão se um punhado de intrépidos respondesse à violência terrorista com uma violência de grau superior, mesmo agindo sem cobertura ou mandato legal. É uma visão do contra-terrorismo que estará presente na filmografia americana até, pelo menos, finais dos anos noventa, em obras como True Lies (1994), com Arnold Schwarzenegger. Em The Siege, de 1998, a tensão entre o respeito pela legalidade e o imperativo da acção directa é personificada no confronto entre um investigador do FBI (Denzel Washington) e um general linha dura (Bruce Willis), que unem esforços para pôr termo à actuação sangrenta de células terroristas islâmicas em Nova Iorque. Nos momentos finais, o agente do FBI ordena a prisão do general, que matara a sangue-frio um terrorista detido à sua guarda. Tudo isto se passa, note-se, antes do 9/11, mas também de Abu Grahib e de Guantánamo, algo que nos deve levar a questionar o manto de irrisão com que geralmente cobrimos a cinematografia comercial de massas.       

A aproximação ensaiada pelo DocLisboa possui, naturalmente, um alcance muito distinto deste género cinematográfico e mesmo de películas como Il Caso Moro (1986), de Giuseppe Ferrara, Munique (2005), de Spielberg, ou O Complexo Baader Meinhof (2008), de Uli Edel. Há incursões pontuais por outras paragens (por ex., o Curdistão e o PKK, em Carnets d’un combattant kurde, de Stefano Savona, 2006; o Peru e o Sendero, em La trinchera luminosa del Presidente Gonzalo, de Jim Finn, 2007), mas o fulcro da retrospectiva é a Europa das décadas de 1960-1970: os "outonos" da Alemanha e de Itália, a Espanha franquista dos processos de Burgos. Muitos dos filmes são desse tempo, outros retratam-no à distância, de que é exemplo paradigmático Ils étaient les Brigades Rouges, de Mosco Levi Boucault (2011). Os Estados Unidos têm uma presença reduzida mas significativa, dado o peso indiscutível dos Weather Underground na contracultura de resistência norte-americana, aqui assinalada no filme Underground, de 1976. A exclusão dos Black Panthers foi deliberada e, num balanço global, a sua ausência não representa lacuna de monta. Em contrapartida, a Argélia, por todas as razões, mereceria uma referência mais explícita, já que, em boa medida, foi ela a matriz de tudo quanto aconteceria depois.

O enfoque no terrorismo dos anos 1960-1970 mostra-se acertado no quadro de uma retrospectiva histórica. Mais do que isso, circunscrever este ciclo a um período temporal delimitado – os anos de chumbo que permitiram a Claire Sterling publicar A Rede do Terror, um best-seller de 1981 – pode configurar-se como uma estratégia polémica. Mas é a mais cautelosa das opções, pois evita que este ciclo resvale numa outra controvérsia, infindável, cujo objecto é determinar se o terrorismo contemporâneo tem, ou não, a sua génese nos movimentos gerados nas décadas de 60 e 70. Com efeito, uma visão comum tende a procurar linhas de continuidade entre as suas diversas manifestações. É o que sucede, por ex., com Bruce Hoffman, mesmo que este autor saliente as metamorfoses que o terrorismo foi registando, desde o regime de la terreur instituído por Robespierre, passando pelos russos da Narodnaya Volya, pelas purgas do estalinismo e, enfim, pelos movimentos revolucionários do pós-2ª Guerra, que desembocariam nos grupos nacionalistas do Quebeque, do País Basco, da Catalunha ou das Molucas do Sul. Se quiséssemos recuar ainda mais, também as doutrinas justificadoras do tiranicídio e do direito de resistência podem ser convocadas para reconstruir a genealogia do terrorismo actual. De facto, o "terror" percorre os escritos de Hobbes ou Montesquieu a ponto de podermos dizer que o medo se constituiu desde há muito como uma ideia política central da tradição intelectual do Ocidente (cf., por ex., Corey Robin, Fear. The history of a political idea, 2004). De igual modo, é possível afirmar que o terror jacobino, praticado em nome da "virtude", condensa e sintetiza toda a aspiração do vanguardismo terrorista: transformar a ordem estabelecida em nome de uma alternativa "melhor" ou, se preferirmos, mais "virtuosa". É esse o discurso legitimador do terrorismo, a forma como este ilude a sua condição minoritária e antidemocrática (segundo os postulados da democracia "liberal", bem-entendido).       

A concentração do olhar nos anos 1960-70, tal como é realizada neste ciclo, permite evitar este debate, a discussão interminável – e em boa medida estéril – sobre se existe uma "tradição terrorista" que remonta, pelo menos, ao século XVIII. Do mesmo passo, possibilita-se uma visão mais aprofundada dos tempos da revolution in the air, título de um livro de Max Elbaum sobre a radicalização política da década de 1960 e a criação de um imaginário transnacional, uma "internacional de referências" (Lenine, Che, Mao…) que permitiu aos filhos da burguesia dos baby-boomers rebelarem-se contra a ordem estabelecida de uma sociedade afluente e próspera.        

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Como atrás se disse, muitos desistiram de encontrar uma definição de terrorismo, questão que não é meramente semântica e que tem um alcance político óbvio. Outros, pelo contrário, não hesitam em avançar uma proposta conceptual, tal como sucede com Michael Burleigh, logo na primeira página de Blood & Rage: A Cultural History of Terrorism (2008): "o terrorismo é uma táctica usada primacialmente por actores não-estaduais, que tanto podem ser entidades sem uma cúpula como organizações hierarquizadas, que procura criar um estado psicológico de medo com vista a compensar a sua ausência de poder político legítimo." Também Bruce Hoffman ensaia uma definição de terrorismo de onde estão excluídos os actos puramente individuais, perpetrados sem o apoio de uma organização de suporte. É isso que lhe permite descartar do seu âmbito de análise a tentativa de assassinato de Ronald Reagan feita em Março de 1981 por John Hinckley Jr. Mas, a essa luz, o massacre de 77 pessoas na ilha de Utøya, feito por Anders Breivik em 2011, também não poderá ser encarado como um acto terrorista. Ora, este modo de encarar a realidade não tem presente um novo elemento: a Internet. Através dela, é possível encontrar alimento doutrinário de toda a espécie, lições práticas sobre os mais variados métodos e tácticas de acção directa e meios de actuação que tornam praticamente dispensável a existência de uma organização de apoio operacional e logístico, ao contrário do que acontecia com o terrorismo "clássico" de outros tempos. Um ciberterrorista pode agir sozinho, fechado no seu quarto. Isso obriga-nos a rever, muito provavelmente, as noções que tínhamos sobre o terrorismo enquanto movimento eminentemente grupal.  

É neste contexto que Das Netz/The Net, de Lutz Dammbeck (2004), se afigura uma obra interessante e perturbadora. Não apenas porque aborda um homem isolado – dir-se-ia: militantemente isolado – mas pela forma subtil como introduz, no debate sobre Ted Kaczynski, o Unabomber, uma perspectiva não totalmente inovadora, mas em todo o caso diferente daquela que marcou muitas análises subsequentes à sua prisão, ocorrida em 1996. É frequente retratar Kaczynski, o matemático brilhante que em 1971 se refugiou contra mundum numa cabana sem água canalizada e electricidade nas florestas do Montana, como a expressão mais acabada – e violenta – de uma tradição antiautoritária e antiprogressista que revisita a atitude dos luditas e o pensamento de Thoreau (o autor de Walden e de A Desobediência Civil é recorrentemente citado, omitindo-se que não foi, nem é, caso único; pelo contrário, há uma dropout culture muito enraizada nos Estados Unidos, que poderemos encontrar, por ex., nas páginas de Gone to Croatan, antologia editada em 1993 por Ron Sakolsky e James Koehnline). Escrevendo por alturas da detenção de Kaczynski, num texto redigido contra o "pensamento banal da esquerda", José Pacheco Pereira salientou a sua "determinação terrorista", nascida de uma "identidade obsessiva contra a história, contra a realidade, contra os homens concretos", traço de desumanidade que encontraríamos também em Che Guevara ou no comandante Marcos, de acordo com Pacheco Pereira. Sem apresentar uma explicação para os actos do Unabomber, o filme de Dammbeck fornece uma visão mais densa do que esta; num certo sentido, uma perspectiva subversiva, de onde não está ausente o eco longínquo das teorias da conspiração (o título, A Rede, aponta para a existência de uma vasta e obscura teia de ligações entre cientistas, agentes secretos, militares e artistas hippies dos anos 60 que se tornaram milionários da informática e da indústria multimédia). Trocando cartas com Kaczynski e entrevistando os seus alvos, Lutz Dammbeck vai-nos conduzindo para realidades menos conhecidas da biografia do Unabomber, com destaque para o facto de este ter participado, como paciente, em testes e experiências psicológicas levadas a cabo pela CIA no âmbito do programa MK-Ultra, que, durante a Guerra Fria, cruzando o behaviorismo, a cibernética e os trabalhos de Adorno sobre a personalidade autoritária, buscava alterar os padrões comportamentais dos seres humanos rumo a uma sociedade mais virtuosa e, curiosamente, mais livre e democrática – uma utopia tecnocientífica que, num certo sentido, não anda longe de muitas das utopias que justificaram a prática sistemática do «terror» durante séculos. 

Do seu refúgio silvestre, Kaczynski enviava cartas armadilhadas, endereçando-as a académicos e executivos de companhias aéreas. Daí o seu nome de código nos corredores do FBI: Unabomber (UNiversity & Airline BOMber). Dezassete anos depois de iniciar a sua campanha postal, enviou uma missiva aos jornais em que prometeu que pararia o envio de cartas-bomba (melhor: "desistiria do terrorismo") se o New York Times e o Washington Post publicassem o seu "Manifesto", 56 páginas de combate contra as ameaças que as novas tecnologias representam para a liberdade individual. O Unabomber foi rapidamente assimilado pela cultura americana. Os seus objectos foram vendidos em leilão, obtendo lucros de 232 mil dólares. A sua cabana está exposta em Washington, no Newseum (o Museu da Imprensa); o fotógrafo Richard Barnes acompanhou todos os seus passos; e existem kit’s da cabana do bombista, para ser montada numa réplica de cartolina. O que ressalta é a tremenda vontade do Unabomber em comunicar, difundir amplamente a sua mensagem, característica comum a quase todos os terroristas. Por isso, Kaczynski exigiu que dois jornais de grande tiragem publicassem o seu Manifesto (que seria amplamente plagiado por Anders Breivik quando este também decidiu divulgar um programa político…). Não por acaso, o Unabomber é um prolífico escritor, que diariamente envia e recebe dezenas de cartas na prisão de alta segurança de Florence, no Colorado. Corresponde-se, em língua alemã, com Lutz Dammbeck, o realizador de Das Netz.

Neste ciclo sobrepõem-se modos distintos de representação do terrorismo. Desde logo, a representação de tipo propagandístico, com objectivos de apreensão imediata, de que é exemplo Red Army/FPLP: Declaration of War. Noutros casos, uma representação historicizada, que procura reconstituir a factualidade de acontecimentos pretéritos, como acontece em El Proceso de Burgos, de Imanol Uribe (1979), o relato daquele que foi um dos maiores trunfos da propaganda antifranquista, como assinalam, nas suas memórias, alguns dos réus do processo (por ex., Mario Onaindía ou Teo Uriarte). Noutros casos ainda, avançam-se propostas mais elaboradas de interpretação e leitura, em que se realça a ideia de "integração" de várias correntes ou grupos por força da partilha de referenciais ideológicos comuns ou até, indo mais longe, de acções de cooperação e interesse mútuo. Outros filmes centram-se sobre indivíduos e histórias de vida, relegando para um lugar secundário, como mero pano de fundo, as organizações, os sequestros, as bombas. Inscrevem-se nesta linha obras como Marianne and Julianne (1981), de Margarethe von Trotta, Colpire al cuore, de Gianni Amelio (1982), Knife in the Head (1978), de Reinhard Hauff, ou La tragedia di un uomo ridiculo (1981). Se, neste conjunto de obras, o pendor ficcional é mais acentuado, existe um filme que escapa a essa regra e merece realce: El Sopar, de Pere Portabella, obra de 1974. Aqui, as dimensões pessoais e documentais cruzam-se de forma exemplar, com a apresentação de um reencontro de antigos presos políticos catalães, que se abraçam efusivamente, almoçam e conversam sobre as suas experiências. Para compreender as motivações da luta armada, este testemunho em directo – e num ambiente surpreendentemente livre e aberto – possui um valor e um interesse que dificilmente são igualáveis. 

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Finalmente, há Mishima. 11/25 The Day Mishima chose his Own Fate, de Koji Wakamatsu, narra o suicídio ritual de um homem que perdeu as graças do mar. A liturgia macabra do seppuku de Mishima e do seu jovem companheiro, Masakatsu Morita, a ocupação do quartel-general das forças armadas, a patética alocução em prol do Japão ancestral e da dignidade divina do imperador, a fundação da Sociedade do Escudo, uma milícia armada que treinava no sopé do Monte Fuji – tudo isto é por demais conhecido. Já se escreveram dezenas de livros em torno do autor de Cavalos em Fuga, havendo até incursões cinematográficas sobre a sua vida e morte, como o lamentável filme que Paul Schrader estreou em 1985. Mesmo para a sua mulher, o suicídio de Yukio não foi um facto inesperado; aguardava-o há muito tempo. O resto, sabemo-lo: a lenta agonia da evisceração, a degolação falhada às mãos de Morita, o remate final dado por outro companheiro de luta. De seguida, o suicídio de Morita; e, outra vez, a lâmina do sabre antigo a trespassar a nuca. "Duas cabeças na carpete, sem dúvida acrílica, do escritório do general, colocadas uma ao lado da outra, como quilhas, quase roçando entre si. Duas cabeças, bolas inertes, dois cérebros que o sangue já não irriga…", escreveria Yourcenar. Deste gesto bizarro, mais erótico do que heróico, parece que nada restou. Porém, se Mishima é hoje um autor pouco lido no seu país natal, no 30º aniversário da sua morte houve ecos de um recrudescimento do nacionalismo nipónico, com o primeiro-ministro japonês a exaltar o poder de "uma nação de deuses centrada no imperador". Yukio sabia de antemão que o seu suicídio não teria quaisquer consequências. Há mesmo quem afirme que a defesa da divindade imperial foi tão-só o pretexto para um suicídio ritual há muito desejado. A atracção por Mishima é, em larga medida, produto da nossa curiosidade mórbida, do fascínio pelo grotesco. Talvez seja essa a razão pela qual uma acção «terrorista» tão desastrada continua a perdurar no tempo e na memória. Significará isto que todos nós, num certo sentido, também somos atraídos pela pulsão vertiginosa do terror alheio?

"Terrorismo, representação" não se destina a mostrar o terrorismo nas suas múltiplas manifestações. Mas permite, sem dúvida, compreender melhor o que ocorreu na Europa quando esta foi abalada, no seu interior, por uma vaga sem precedentes de terror e morte. A terminar, uma advertência, imprescindível: por mais que compreendamos, este é decididamente um caso a que se não aplica a máxima tout comprendre c’est tout pardonner.

 

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