Castelo Novo

1. Sancho I tinha um bicho-carpinteiro. Entre dar cabo de castelhanos a oriente e mouros a sul, foi povoando a jovem nação com genes reais (20 filhos, de quatro mulheres) e forais para novos burgos, entre os quais este de onde escrevo, Castelo Novo, empoleirado na serra da Gardunha. Estou há tantos meses dentro de uma toca que me pareceu toda uma escalada, do Alto Alentejo para a Beira Baixa. Ainda mais para o interior, mas muito acima do mar, o que faz com que, ao fim de meses sem horizonte na janela, eu veja até Espanha. É como sair da hibernação em sentido contrário aos bichos. Chego aqui no fim do Verão, quando as belas cerejas da Gardunha já são passas, compota ou pickles. E, portanto, continuam a comer-se, do pequeno-almoço ao jantar.

2. O ano do foral é 1202, ainda Portugal não tinha 60 anos. A concessão de el-rei permitia a um tal Pedro Guterres (na versão arcaica, Petrus Guterri) criar um concelho independente da Covilhã, reforçando toda esta fronteira contra os avanços castelhanos. Então, Guterres ergueu o castelo, com a sua torre de menagem, ainda hoje coroa da aldeia. Mas, em 1205, já estava a deixá-lo em testamento aos Templários, que andavam na sua Quarta Cruzada contra os mouros. É assim que em 2014 uma pessoa vem lá das planícies mouriscas e se vê a trepar a Calçada dos Templários, como se estivesse dentro de um best-seller.

3. Era isto ao lusco-fusco, depois de dias de chuva, quando finalmente subi ao castelo, passando o pelourinho, as bicas de água, a devoção à senhora da serra, tudo em granito, chão, paredes, fragas, muros, cruzes. Vendo uma portinhola aberta, entrei por ela, achando que seria uma entrada para o castelo, e não deixava de ser, a entrada de serviço para os alicerces, digamos, uns pedregulhos que ali devem estar desde o próprio Petrus Guterri. Mas subindo por eles dava para alcançar o passadiço de ferro contemporâneo que leva os visitantes ao que resta de torrões e ameias. Além de ter enchido a serra de castanheiros, D. Dinis ainda cuidou do castelo, provendo-o de arcos em ogiva e aquelas aberturas de defesa & ataque chamadas mata-cães. Depois, entre guerras, invasões e pestes, o século XIV deixou o castelo ao abandono, até que D. João I lhe deu de novo atenção, erguendo a torre do relógio. O sino ainda não batera as oito, com aquela vibração metálica que a cada meia hora sacode Castelo Novo, seja dia ou noite. Umas nuvens de capela sistina, rosa-dourado, nenhum humano à vista até Espanha, e nas costas a concha da serra, onde nasce a água do Alardo.

4. Desci do castelo para subir à nascente, seguindo uma estradinha entre velhos casarões e palheiros abandonados, até que na última curva o ar se encheu de cães a ladrar. Eu não os via, mas ouvia que eram vários, e pelo sim, pelo não, dei meia-volta. Viver com duas cadelas no Rio de Janeiro fez-me perder o medo de cães, e agora no Alentejo tenho um casal no quintal, mas assim de repente ainda não estou preparada para uma matilha da serra, ao crepúsculo.

Foto

5. Foi nessa volta que me achei na Calçada dos Templários, e depois diante da Quinta do Alardo, de que vira bucólicas fotografias, hoje fechada a visitantes. Por causa das águas, boas para rins, diabetes e afecções hepáticas, Castelo Novo foi uma estação termal, e em 1919 teve direito a um Hotel das Termas. Segundo relatos de época, não só o hotel enchia como era impossível encontrar um quarto livre na aldeia, tal a procura. Era no tempo em que os homens indígenas trajavam calça de saragoça ou surrobeco, lenços de cachiné listrado, cinta de franjas, jaqueta e chapéu de abas largas, botas e socos, e as mulheres saiotes de betão vermelho listrado de preto, missangas e bordados, peitilhos com folhos e rendas, fitas de algodão de cores garridas ao pescoço, lenços de merino, chapéus de palha, sapatos de calfe, meias de lã tricotadas à mão, pelo menos segundo a descrição do cronista Manuel Poças das Neves, que se assinava Malpone, e deixou uma monografia sobre a aldeia. Ele nos diz que Castelo Novo “cultiva todos os cereais, possui frescas e mimosas hortas e já vai desfrutando de excelentes pomares”, além das tecedeiras, das ceifas, das azenhas, dos fornos de pão, das debulhas do milho, da colheita da azeitona e da fogueira de Natal.

6. Quem me emprestou a nostálgica monografia foi a dona Maria, minha anfitriã em Castelo Novo. Em 1952, quando a febre das termas passou, o pai de dona Maria comprou o antigo hotel, a meias com um cunhado, para residência das duas famílias, uma em cima, outra em baixo, com a grande sala do piso intermédio partilhada. É nessa sala que a dona Maria me há-de contar tudo isso, junto à lareira que então não havia, apesar da neve entre Dezembro e Março. Aqui cresceu ela, pai na lavoura, mãe na padaria, e de tudo isso há vestígios na loja, ou seja, o piso térreo, hoje quase um pequeno museu, incluindo lagar de vinho. Também se fazia queijo de cabra e ovelha, também se matavam porcos, e ainda hoje a única venda que vi em Castelo Novo é de enchidos.

7. Orlando Ribeiro viu nesta serra o ponto onde Portugal se divide entre relevos e planícies, serra da Estrela para norte, Alentejo para sul: “O contraste é impressionante entre as serranias que, pelo norte, barram o horizonte próximo e o planalto a que se não vê o fim: sobre ele, as manchas de verdura vão-se tornando cada vez mais desbotadas, indecisas e distantes. Na verdade, é o Alentejo que se anuncia.”?José Saramago, que por aqui andou na sua primeira viagem a Portugal, e aqui voltou décadas depois, escreveu sobre a luz e a sombra nesta encosta em que se aninha Castelo Novo, azuis opalinos, ametistas, diria Malpone.

8. Mas à noite é que a aldeia refulge. Porque é quando o granito desperta nas suas mil luzes, com aquele brilho de jóia incrustada, luxo de mariposa, seja o solar de um nobre ou o casebre de um lavrador. Nem vivalma pelas ruas, e sempre o rumor da água descendo da serra, e sempre o fulgor da pedra, que nunca nos deixará às escuras.     

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