Candidinha e tudo o que a maldade lhe fez

A Farsa é o regresso do colectivo Karnart a Raul Brandão. Até ao dia 19 de Outubro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, tudo é dor e escuridão.

Sara Carinhas é a única actriz em palco
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Sara Carinhas é a única actriz em palco Filipe Ferreira
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Candidinha vive amargurada. É má porque a vida nunca lhe permitiu ser boa. É amarga como um limão, daqueles bem verdes. Vive na desgraça porque a desgraça se apoderou de si. Não tem medo da morte porque só essa é certa na sua vida. Tão certa quanto o ódio que sente pelo mundo que a marginalizou desde sempre. Mundo esse que está exposto desde ontem, e até ao dia 19 de Outubro, na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II.

Candidinha é a figura central de A Farsa, espectáculo que marca o regresso do colectivo Karnart a Raul Brandão, depois de Ilhas, em 2012, e Húmus, em 2010. Candidinha é saída de um texto escrito em 1903 por um dos nomes maiores da dramaturgia portuguesa mas podia bem ser uma mulher dos nossos dias. É nisso que pensamos quando a vemos definhar à nossa frente. A vida que nunca teve, mas que gostava de ter tido, corroi-a por dentro, e o mal que deseja aos outros e que se vira tantas vezes contra ela destrói-a. Podia ter sido outra pessoa, o mundo não deixou. Vive por isso a sua vidinha. Tivesse ela coragem para enfrentar todos aqueles que tanto a desprezam, soubesse ela dar a volta à situação. Assim, resta a farsa da submissão, resta a farsa de ser falada enquanto fala apenas para si.

Está escuro, muito escuro. A figura da mulher ali no meio da sala vai desenhando-se aos poucos num cenário que privilegia o negrume. Só pode ser assim, esta vida não conhece muita luz. Se conhecesse, talvez tudo fosse diferente.

Espelho da alma humana

Para Luís Castro, responsável pela concepção e direcção deste espectáculo, regressar a Raul Brandão foi um passo óbvio. Escolheu A Farsa porque ficou fascinado pela “dimensão humana das personagens”. “Todos estes indivíduos que Raul Brandão põe em cena n’A Farsa são quase que estereótipos da sociedade portuguesa, são personagens com as quais nos identificaríamos facilmente se a vida nos tivesse obrigado àquele mesmo percurso.”

A vida não nos obrigou a isso e ainda bem. Porque o que vemos acontecer em palco é o transtorno de alguém que foi marginalizado pela sociedade e que viu o ódio e a inveja crescer à medida que isso foi acontecendo. Ouvimos às tantas dizer: “A inveja é um veneno que me tem azedado”. “Faz-me bem.”

Questionamo-nos como pode a inveja fazer bem. E a resposta surge quando esta nos diz que não conhece outro sentimento. A sua vida sustenta-se de dor. É já uma “velha de pedra e ódio”. É mesmo negra esta desgraça.

“É incrível como neste texto todas as pessoas são tão coerentes, mesmo se más e mesquinhas e sórdidas. E Raul Brandão explica-nos tão bem porque é que elas são assim, é porque a vida lhes trocou as voltas, fossem elas ricas ou pobres, melhores ou piores. Estamos perante uma obra que é um espelho da alma humana.”

Luís Castro fala no plural porque apesar de vermos um só corpo em cima do palco, o de Sara Carinhas, esse corpo dá vida a várias personagens. Carinhas transforma-se e salta de história para história, sem para isso precisar de  adereço. É com o corpo que trabalha. Está nua em palco (apenas na primeira parte do espectáculo).

“À medida que íamos trabalhando e o projecto se ia cimentando, eu ia percebendo que não valia a pena ter mais pessoas”, conta o encenador, explicando que as “personagens não são nunca suficientemente desenvolvidas para ter outros actores a fazê-las”. São pinceladas de personagens, à excepção de Candidinha, que apesar de ter a sua história cortada, aparece de forma mais aprofundada. “Às tantas percebi que conseguia conciliar todas os personagens numa pessoa que tivesse a ambivalência, a capacidade, de as dar a todas, fossem homens ou mulheres, novos ou velhos. E a Sara tem”, acrescenta.

Castro quase nunca se refere a Sara Carinhas como actriz mas sim como performer, assim como não chama ao seu trabalho uma peça de teatro. “É uma perfinst, ou seja, um misto entre performance e instalação”, diz. “Nós trabalhamos muito nesta bipolaridade, em que dizemos que os objectos se humanizam e os humanos se ‘objectizam’ [se tornam objectos]”, continua o encenador, que dividiu o espectáculo, em monólogo, em duas partes. “A primeira é mais performativa e a segunda mais plástica, mais instalativa.”

É por isso que os objectos nunca são usados como meros utensílios de decoração. E é por isso também que Castro convida os espectadores a circular pela sala enquanto a acção acontece. Quase como quem está num museu ou numa galeria e circula para ver todas as obras. “Os objectos são usados como motor de uma narrativa própria, de uma leitura própria. Há muitas metáforas naqueles objectos, vai para além do que o texto diz”, conta, admitindo que é um espectáculo “difícil e com um tempo muito lento”. “Mas o meu papel é pôr as pessoas a pensar, a questionar, é isso que procuro”, acrescenta.

O texto, esse, não segue a cronologia de Raul Brandão. “Foi um processo de dramaturgia muito cerrado, o texto foi cortado, trocado de ordem.” Mas é Raul Brandão, garante - “esse autor cuja obra é intemporal e estas questões são intemporais. Aconteceram há cem anos e provavelmente acontecerão no futuro com mais ou menos tecnologia, mais ou menos avanços, porque os sentimentos de dor, prazer, carinho, ambição, continuarão a existir.” Assim como Candidinha continua a viver. 

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