Canções de morte e morte

Em Mirel Wagner não há qualquer maniqueísmo. Apenas uma atracção desmedida pela morte, pelas circunstâncias da morte e pela sua chegada, sem anúncio, de forma precoce

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O Leonard Cohen de Songs of Love and Hate ensombra cada canção de Mirel Wagner – uma infusão de beleza no macabro

O primeiro álbum de Mirel Wagner, lançado em 2012, continua hoje a soar como um arrepiante conjunto de canções retorcidas. A partir de uma actualização possível deSongs of Love and Hate, de Leonard Cohen, desenterrava fantasmas e mortos, cantava sobre infâncias presas à vida por um fio ou esmagadas sem clemência, sobre idas até ao rio que serviam para lavar pecados e atalhar suicídios e amores cumpridos para lá da morte. A finlandesa nascida na Etiópia atirava-nos todas estas histórias com uma voz entre a doçura e o assombro, como se nos cuspisse para a cara o negrume de um imaginário rural em que as narrativas trágicas e lúgubres — ao contrário dos corpos — não vão ao fundo. E como se da sua própria boca pendessem ainda bocados de terra, próprios de quem se esquecera de se limpar depois de esgravatar tantos podres.

When the Cellar Children See the Light of Day

 prossegue nessa via doentia de crianças que jazem debaixo do chão, lábios mordidos, dentes de leite à espera de dar lugar aos definitivos, barrigas inchadas rodeadas de moscas (

1 2 3 4

) ou que confessam saber que o poço está seco e que a terra não se come nem se bebe enquanto pedem à mãe mais uma história para adormecer (

The Dirt

). É assim desde o primeiro segundo, até que uma morte por asfixia (cortesmente servida por uma almofada como certeza de que o dia seguinte será melhor), em 

Goodnight

, termina a sessão. Cohen continua a ensombrar cada canção, nascida do mesmo registo voz e guitarra que anteriormente, e o universo mantém-se imóvel num pântano que soa ao repositório do lado negro de toda a literatura infantil, à qual foi aqui sonegada qualquer hipótese de pirueta moral ou recomposição do equilíbrio entre Bem e Mal lavrada nas últimas linhas.

Em Mirel Wagner, de facto, não há qualquer maniqueísmo. Apenas uma atracção desmedida pela morte, pelas circunstâncias da morte e pela sua chegada, sem anúncio, de forma precoce. Uma infusão de beleza no macabro. E que, correndo o risco de acabar soterrada em tempos próximos, volta ainda a perturbar e a encantar num braço-de-ferro sem vencedor. Enquanto não ganhar o susto, estamos bem. 

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