Caminhar nas cidades com um olho estrábico

Num Brasil que continua a negar a rua e a barricar-se em condomínios fechados, falou-se da liberdade para ir além do limite da propriedade privada que ainda há em certos lugares da Europa. Arquitectura, espaço público e democracia, no segundo dia da FLIP.

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As cidades também têm buracos e espaços vazios, defende o arquitecto italiano Francesco Careri
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A brasileira Lúcia Leitão e o italiano Francesco Careri na FLIP WALTER CRAVEIRO

Mostra-me como te moves no teu espaço e eu dir-te-ei quem és. Este ano, podia ter sido este o mote da habitual mesa que a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) dedica à arquitectura, por onde já passou, em 2013, o Pritzker português Eduardo Souto de Moura. Juntos em palco estiveram Francesco Careri  que formou em Roma o colectivo Stalker/Osservatório Nomade e é o autor do livro Walkscapes: o caminhar como prática estética – e a arquitecta e académica Lúcia Leitão, que no seu trabalho utiliza a psicanálise e a interpretação proposta por Gilberto Freyre para pensar as cidades brasileiras contemporâneas.  

Há dez anos que o arquitecto italiano dá um curso na Universidade de Roma a que se chamou Arti Civiche (artes cívicas). É sempre dado na rua, até os exames. Professor e alunos encontram-se uma vez por semana e caminham durante um dia inteiro até ao pôr-do-sol, com paragem para um piquenique. Percorrem em média 11 quilómetros em cada etapa e, uma semana depois, recomeçam do ponto onde terminaram. Andam a esmo, sem direcção. Caminham com “um olho estrábico” que, como explica Careri, olha para tudo aquilo que os pode desviar do percurso marcado: “Normalmente é esse olho que vence, é ele que nos leva para as áreas mais interessantes."

Quando se caminha ou se percorre uma cidade de carro atravessam-se lugares que não correspondem à ideia que temos dela. Careri diz que temos “amnésia urbana”, porque esses lugares são rapidamente apagados do nosso mapa mental. “O que faço desde 1995 com os meus alunos e com o meu grupo Stalker [título inspirado no filme homónimo de Andrei Tarkovsky] é entender que existem regiões de sombra, que há uma parte escondida – um inconsciente da cidade.”

Nesses percursos há sempre algo a descobrir. O arquitecto lembra que existem fenómenos urbanos que não estão nos livros de urbanismo, sociologia urbana, antropologia ou geografia. São fenómenos móveis, ou cujas necessidades foram atendidas e por isso deixam de existir. A única maneira de os encontrar é perdendo-nos na cidade. “Todos podemos fazê-lo, basta sair-se de casa com esse espírito explorador”, acrescenta Careri. Só que andar para além do limite "é uma acção ilegal": "Se eu fizer nos Estados Unidos o que faço em Itália posso ser preso, porque lá a propriedade privada é sagrada. Para nós, latinos, é mais ambígua. Podemos jogar com os limites e com as fronteiras. E se conseguirmos passar por cima dessa fronteira vamos descobrir que existe um caminho novo. Fiz isso na Bahia e em São Paulo e estou vivo."

Logo que começa o curso, conta, costuma perder todos os alunos anglo-saxónicos ou alemães, absolutamente incapazes de ultrapassar o primeiro muro de propriedade privada com que se deparam. Oitenta por cento do curso realiza-se em lugares onde não se pode entrar. Os latinos costumam ficar. No final do percurso, que demora um semestre inteiro, o professor pede aos alunos que escolham um espaço onde queiram intervir arquitectonicamente. Costumam dizer-lhe que sentem que a sua geografia mental se ampliou. A ideia que tinham de cidade, com buracos e espaços vazios, ficou preenchida. A amnésia urbana desapareceu.

É também por isso que o professor, que em 2009 esteve a fazer um destes percursos em Lisboa, costuma pedir aos alunos que desinstalem dos seus computadores o AutoCAD, um programa de desenho usado para realizar projectos. “Hoje, as nossas faculdades produzem os chamados 'CAD monkeys', macacos do CAD, arquitectos que ficam no computador de auscultadores, a olhar para o ecrã e a obedecer às ordens de um chefe, normalmente uma archistar – que pode ser um Frank Gehry ou um Jean Nouvel – e cujo único desejo é um dia vir a ser como eles."

Talvez não seja possível actualmente fazer-se arquitectura sem computador, mas Careri assegura que os seus alunos saem do curso com “liberdade de imaginação”.

Negar a rua

Muitas pessoas optarão por não caminhar pelas cidades por causa do que isso implica. Como lembrou Lúcia Leitão, andar na cidade “é obrigatoriamente ter o outro em face”. Há mesmo um autor americano que diz que uma cidade sem lugares para caminhar é uma cidade sem lugar para a alma. E essa é uma marca da cidade brasileira. “Porque, na realidade, nós nos constituímos como sociedade negando a rua”, argumenta a arquitecta, explicando que, na história do Brasil, a rua era o lugar “que só os escravos frequentavam, tinha um uso servil e uma função plebeia”. Isso acabou por se inscrever na sociedade como uma marca identitária e daí a dificuldade que existe, no Brasil contemporâneo, de se conviver com a diferença: “Como nos negámos a viver a rua, também não aprendemos a dimensão básica da urbanidade que é reconhecer a diferença. Abrimos mão disso e em consequência somos uma sociedade mais pobre."  

A arquitectura não é nem nunca foi neutra. Também “não nasce do brilhantismo do arquitecto, por mais competente que ele seja”. No traço do arquitecto “está embutido” tudo o que ele é e toda a cultura de onde vem. “No Brasil colonial habituámo-nos a viver o espaço privado – porque a rua era do plebeu – e na contemporaneidade isso foi revisto e actualizado com a criação de condomínios fechados – contra a rua, contra o outro, contra quem não tem a mesma classe social ou a mesma educação. A isso acrescenta-se a construção dos centros comerciais onde as pessoas podem fazer tudo sem sair de lá."

O arquitecto italiano contrapôs que na Europa a realidade ainda é diferente da dos países da América Latina ou dos Estados Unidos. “Caminha-se em qualquer lugar, o território é nosso, porque o reivindicámos”, disse, lembrando que ensinar a caminhar é um grande acto de democracia.

Mas a Europa enfrenta outros problemas. Já no final da conversa, houve perguntas do público sobre a crise dos refugiados, questionando se através da reorganização do espaço arquitectónico é possível incluir os que chegam numa cidade. Francesco, que acompanha o fenómeno migratório já há quase 20 anos, contou que em 1999, com o seu grupo, ocupou um edifício no centro de Roma, um ex-matadouro da cidade, para o abrir a refugiados curdos. “Recuperámos o edifício para mostrar que era possível construir um espaço hospitaleiro para os refugiados. Continua lá. É a obra de arquitectura mais importante que realizei com o Stalker/Osservatório Nomade. Habitualmente os campos de refugiados estão a 50 quilómetros das cidades. Este centro era administrado pelos curdos e sem se pedir um tostão à economia pública. Criámos um modelo para acolher.”

Hoje, diz o arquitecto, é urgente reorganizar as cidades europeias: abandonar os campos de refugiados que parecem prisões e construir bairros interculturais onde seja possível encontrarmo-nos com o outro.

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