Caetano Veloso

No Primavera Sound deste ano, Caetano Veloso deu uma lição de dignidade. Foi preciso um festival de catalães para que uma figura como Caetano reentrasse, no nosso país, dentro do universo das vanguardas. Amado por cada vez mais músicos internacionais das novas gerações, este brasileiro perfeito precisa que deixem de o ver como coisa de gente mais velha. Ele é, sempre foi, um passo bem à frente.

Digo dignidade porque, diante de milhares de jovens, estrangeiros, punks e gente do rap ou do dance, Caetano fez o seu número de baiano sem histeria, apenas maturidade, voz de deus, letras inteligentes e canções. Tive medo que quisesse exagerar no rock para parecer mais coisa de festival de Verão, mas nada disso. Ele fez o festival de Verão ascender à delicadeza e erudição da sua arte brasileira. Teve rock, sim, mas teve sobretudo coragem e foi muito amado por estar ali genuíno, limpo.

Eu sei que o Primavera Sound do Porto acaba por ser o lado mais óbvio do festival catalão. Muitos dos projectos novíssimos ficam-se por Barcelona. No Porto, preponderam sobretudo os nomes antigos, com muitas ressurreições duvidosas e arriscadas (o cartaz do ano passado, por exemplo, poderia, à primeira vista, parecer uma coisa ali de 1988). Eu procuro sempre aquilo que ainda não conheço. Gosto de ouvir o que nunca ouvi, mas compreendo o revivalismo e a vontade de que o passado não acabe e seja parte de todos os tempos.

De qualquer modo, nem toda a gente consegue pertencer a todas as épocas. Alguns projectos são apenas imagens de um período, de um som, e ouvimo-los com a mesma impressão com que regressamos a ver a escola onde estudámos. Ao fim de um tempo, chega, fica só a melancolia.

O Caetano Veloso carrega a glória de não ter isso. Depois dos setenta, ele segue apenas sendo o ininterrupto criador de excepção e fica como gente profundamente viva e actual em qualquer festival do mundo.

O que faz com que o músico brasileiro seja sempre menino novo ninguém sabe. Deve pertencer aos orixás a resposta. Mas é verdade que há nele uma mescla inusitada de sabedoria madura e jovialidade, como se alguém pudesse estar sábio e estreante a cada instante. Ele sabe e começa a cada dia. Esperamos dele tudo. Dentro da sua identidade, já mostrou bem isso, há pouco limite. Isso afere a sua vontade de não passar. Ele vigora. Está em vigor. Há leis que, por serem justas, ficam a valer para sempre. As pessoas também podem ser assim. As brilhantes, claro, carregam a sua própria justiça.

Foi muito especial perceber, no fim, o mundo de gente comentando aquela letra acerca de não invejar a maternidade nem a sagacidade, nem a lactação ou a menstruação, o que Caetano inveja são os orgasmos múltiplos. Raro acontece que, sobretudo num festival, o que se diz numa canção seja efectivamente ouvido e fique como chavão para a noite. É bom perceber o poder da poesia num evento de massas. Digo poesia, algo escrito com a seriedade da arte, e não os pregões brejeiros que ouvimos nas queimas das fitas.

Ao meu lado, um grupo de moças inglesas dançava. Elas não acompanhavam certamente as letras mas ficavam-se pelo baile contido no som de Caetano. Não é derramado, como tanto outro som da Baía, mas está lá, e era bonito ver como elas catavam as batidas em jeito de quem queria calor e algum carnaval. Uma moça dizia que Caetano era o maior. Era o maior. Faziam uma roda. E paravam quando as canções se tornavam mais lentas e se podia ouvir a voz, essa porcelana na boca do brasileiro. Uma voz de profunda candura, quase feminina, mesmamente afinada e requintada, como sempre.

Os festivais nem sempre são generosos com as vozes. A perda da intimidade dos espaços retira a solenidade de que alguns cantores necessitam. Mas ali funcionou. Caetano tem algo de pássaro nas cordas vocais mas há um búfalo nos pulmões. Por toda a terra se ouviu, pormenorizado, afinado e seguro. Foi arrepiante. Como se deus saísse das igrejas e viesse aos campos. Aos campos belíssimos do parque da cidade do Porto, onde magnificamente se tem feito o Primavera Sound.

Não fora o frio, o vento gelado passando a noite inteira, teria sido inatacável a felicidade daquele instante.     

Sugerir correcção
Comentar