Bia: a pop que vem das ilhas

Fora do grupo Xaile, é a estreia a solo de Bia: Chi-coração, onde assina três canções, nasceu pop em matriz tradicional, rasando modas e ritmos açorianos. Um som que veio para ficar

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Terra natal do grande Zeca Medeiros ou berço dos infelizmente extintos bANDARRA, os Açores continuam a dar novos frutos musicais. A cantora Bia, que alguns já conhecerão do grupo Xaile, estreia-se a solo com Chi-coração, disco pop de matriz tradicional portuguesa e com forte alma açoriana. É uma coisa antiga, de família, que agora ganha nome próprio.

Nascida em S. Miguel, Açores, a 20 de Fevereiro de 1980, Bia (ou Beatriz Noronha) tinha um tio-avô maestro que foi fundador da Tuna Académica da Universidade de Coimbra. E a mãe, cantora, chegou a fazer parte do grupo Efe 5, ao lado de Carlos Alberto Moniz. "A música, a composição e o arranjo sempre estiveram no sangue da família", diz Bia, que começou a cantar ainda na ilha de S. Miguel, com apenas 5 anos, no coro da escola e como solista do Grupo Folclórico Infantil.

Profissionalmente, começou aos 14 anos, em bares e bailes. "A minha primeira actuação como profissional foi algures em Junho de 1994, na freguesia da Fajã de Cima, num coreto, com uma banda de baile. E a primeira música que eu cantei foi o Nah neh nah dos Vaya Com Díos." Era a cantora do conjunto. Na altura havia na ilha uns três: Art Band (o dela), Os Académicos e os 4+1. "Chegávamos a fazer das dez da noite até às dez da manhã, o que me deu uma experiência de palco enorme. Tive verões com 32 concertos."

Depois, como queria "arranjar uma desculpa" para ir para Lisboa, andou à procura de um curso que não existisse na Faculdade dos Açores. Escolheu-o, e licenciou-se mais tarde em arquitectura. Mas quando chegou a Lisboa começou a deprimir-se. "Porque a música era parte integrante da minha vida e em Lisboa não tinha nada. Nem havia tuna. Então inscrevi-me numa escola de música, a JBJazz, para estudar piano e harmonia e ter aulas de canto. Como se isso não bastasse, decidi fundar a Arquitectuna, cantar umas canções, fazer uns arranjos e até escrever umas letras."

Houve uma altura em que deixou de ouvir música por prazer, ouvia-a só em sentido técnico. "Não conseguia ter uma relação emocional com a música nessa altura, ouvia-a verticalmente, era tudo muito matemático." Isso irritou-a, mas mais tarde reconheceu que lhe foi muito útil. Só quando a convidaram para entrar no grupo Xaile, em 2004, redescobriu na música o sentido antigo, o do prazer. "Percebi que aquilo que eu estudei me servia para ser emocional." Trabalhou no disco de estreia desse grupo, Xaile, até ao ano em que ele saiu, 2007, e depois foi mãe de uma menina, nascida em 2010. "Ainda cheguei a fazer concertos com uma barriga bem grande, parecia uma baleia em palco..."

O grupo não acabou, mas a carreira a solo impôs-se-lhe com uma necessidade. Trabalhava nessa altura com um arquitecto, mas a arquitectura sofrera com a crise económica e ela concluiu que "tinha que ter uma vida." Foi então ao estúdio falar com Rui Filipe (pianista e compositor, responsável pela existência de grupos como Xaile, Rosa Negra ou Caixa de Pandora), começou a fazer canções e, de um momento para o outro, tinha um disco a nascer-lhe das mãos. "Saiu-me de uma maneira tão orgânica que foi como uma epifania. Percebi que era mesmo aquilo que eu tinha de fazer."

Capote e mar
Foram, ela e Rui, uns dias para os Açores. "Tertuliámos imenso com poetas, músicos, uma data de gente nos Açores, gravámos sons das caldeiras, das lagoas, estivemos ali a viver seis ou sete dias completamente intensos, fizemos muitas experiências." Três anos, demorou o disco a estar pronto. "Tudo aquilo que se quer bem feito tem que ser muito bem pensado. Dá-se um passo em frente, meio passo atrás, repensa-se, questiona-se." O financiamento também não foi fácil, teve um apoio da Fundação GDA mas não teve outros com que contava. E teve que ir "pedir dinheiro a quem o tem", ou seja, aos bancos, contraindo um empréstimo para editar o disco, no qual os músicos tinham participado por amizade e gosto pelo trabalho.

O design do disco, a cargo de um arquitecto seu amigo (Tiago Galo) também foi demorado. "A dúvida era: como é que transpomos para imagem um som que tem um lado tradicional mas é moderno, é world music mas não é só world music?" Então ela pôs pela cabeça um capote de criança ("misterioso ma non troppo") e a sua imagem foi sobreposta à do mar. "Este disco é muito mais autobiográfico, tem mais a minha identidade, estou mais exposta aqui do que no Xaile." O disco tem três temas com a assinatura dela em parceria com Rui Filipe (Sou de uma ilha, Indecisa decisão, Já te disse hoje?), três de Rui Filipe com Maria Ceia (Monopólio, Ora vira, Terelão-tão-tão), quatro só de Rui Filipe (Meio a meio, Talento nato, Carta de despedida e, como faixa escondida, Canto das estrelas), dois tradicionais com novos arranjos (Tanchão/Lundum e Josézito) e duas versões: Uma canção comercial, de Pedro Osório (que teve o 3.º lugar no Festival de canção de 1979) e Lamento, de João Miguel Sousa e Fernando Reis Júnior, incluída no CD/DVD 25 anos de Música Original nos Açores.

Em Sou de uma ilha, Bia escreve: "Sou de uma ilha, não há volta a dar/ Onde o princípio do fim é só mar/ Sou sangue fogo que há na cratera/ Sou de alma livre e de quem navega". E cita modas, lugares, coisas e nomes como Nemésio, Quental, Amália, Natália, Agostinho; Zeca (Medeiros, que canta em dois temas do disco), Raposo, Luís (os dois Bettencourt), Chico e Edu Lobo, Regina (Elis) e Tom Jobim, (José) Afonso, (Jorge) Palma, (Sérgio) Godinho, Vitorino. Uma volta grande, mas com regresso: "Quanto mais saio da ilha, mais eu fico nela", diz o refrão.

Mas esta é uma volta que só em parte corresponde às suas mais directas influências. "Sou mega-fã da Ella Fitzgerald mas também da Manuela Azevedo, acho que é uma das melhores cantoras e intérpretes portuguesas; ou da Maria João, que é uma referência incontornável. Mas não canto a pensar na forma de elas cantarem. Tento resumir-me àquilo que sou capaz de fazer e tento fazê-lo o melhor possível. Com a minha verdade e com a minha voz."

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