Belém: um lugar com muitas explicações

O programa ideológico do Estado Novo contém, na construção urbanística que promoveu, nefastas consequências que nos devem fazer reflectir.

Vive-se cada vez mais a história a toque de “eventos”, efemérides procuradas afanosamente em almanaques e bordas d’água. Sempre foi assim, dir-se-á. Só que, na era do espectáculo, este (ab)uso do passado deixou de ser verdadeiramente acompanhado de (re)elaboração pelo presente, resumindo-se a uma espécie de parasitagem do processo histórico, que surge simplificado ao extremo, tornando-se promotor muito mais da infantilidade e da propaganda do que da adultícia e da cidadania.

Vem isto a propósito de uma anunciada iniciativa sobre a “Exposição do Mundo Português: Explicação de um lugar”, sendo este lugar Belém, porventura o mais simbólico espaço português, pelo menos desde que nos finais do século XV D. Manuel entendeu construir aí o panteão real, depois convertido em enaltecimento das venturas do Gama, feitas também venturas do reino. Um sítio em que tudo nos impele no sentido da sedimentação histórica e do palimpsesto urbano que dela resulta. E nada nos autoriza nem a eleger de tal estratigrafia uma só camada, nem muito menos em deixar de a avaliar com espírito crítico.

Da Exposição do Mundo Português conhecem-se amplamente as motivações. Em síntese, pode dizer-se que foi promovida no quadro da exaltação nacionalista que depois da “pacificação” falangista de Espanha pretendia afirmar o génio imperial lusitano, demarcando-o também da futura ordem hitleriana, cuja aurora se antecipava, ainda que pelo meio houvesse de passar por cruzadas purificadoras – das quais aliás a Ditadura, convertida em Estado Novo, “protegia” a nação, sobretudo quando as coisas começaram a dar para o torto na frente internacional e, na doméstica, se instalou zaragata no pátio das cantigas, amparado no velho charabã Salazar.

Já quanto à “construção do lugar” menos tem sido dito (embora haja investigação recente que importa compulsar), sendo tentadora a ideia de pretender enaltecer o rasgo visionário das comemorações centenárias em Belém, reportando aos seus obreiros a matriz do presente. Ora, esta ausência de espessura desvirtua e na realidade trai o passado. Sem espírito de confrontação com o curso da história, importa antes indagar com a liberdade intelectual que impõe o ofício de historiador.

O que dá então forma a Belém? Antes de tudo e sem ir mais além no tempo, os aterros da 2ª metade do século XIX, especialmente os de finais da centúria, pagos pela Companhia dos Caminhos de Ferro, que levaram a praia para bem longe do Mosteiro dos Jerónimos, em cujas paredes os pescadores deixavam ainda as redes a secar nas primeiras décadas do Liberalismo. Depois, a construção aparatosa de uma nova ala do complexo monumental, erguida à rédea solta por industrial tão empenhado em bem-fazer a órfãos desvalidos, como sedento de posteridade… quando o declínio do Fontismo era já evidente. Depois ainda os arranjos exteriores das primeiras décadas do século XX, de que subsiste o Jardim Botânico Tropical e a Praça Afonso de Albuquerque. Mais tarde, então, o sistema de praças amplas, indutor do respeito pela ordem. Em meados do século XX, o abandono da colina do Restelo, entregue ao imobiliário. E por fim, os acrescentos da Democracia, que se limitou a “fechar” o perímetro, a ocidente (CCB) e a oriente (novo Museu dos Coches), disfarçando pudicamente o terreiro da tropa com singela faixa ajardinada fronteira aos Jerónimos, onde cavalos e carros hoje amiúde patinam.

Eis aqui a Belém que nos é dado ver e nos encanta. Vivesse eu no último quartel oitocentista e certamente saudaria, com Ramalho, a queda da torre do relógio em 1878, de vergonha, porque de vetustez não podia ser; mas se hoje ela lá estivesse… talvez a achasse audaciosa no seu revivalismo histriónico (como assim há quem considere o zimbório pespegado na igreja e objectivamente humilhante do manuelino). Vivesse antes da celebração imperial, repudiaria presumivelmente a destruição de vasto edificado, mais de meia centena de casas, passadas a camartelo (pedindo aqui emprestada a palavra a Herculano, que muitas voltas terá dado na tumba, vendo o seu antigo concelho passado pela rasoira dos “homens da destruição, dos alinhamentos, dos terreiros, da civilização vandálica”), sob pretexto de que se tratava de meros barracões, quando neles havia desde construções quinhentistas até ao mercado de Belém, belo na sua arte do ferro e esventrado a tal ponto que pouco tempo resistiu depois da passagem do “ciclone centenário”… mas, tendo-se varrido de mim essa memória sensorial, hoje convivo bem com a largueza dos espaços que lhe sucederam. Tivesse vivido um pouco mais tarde, estaria seguramente com Cottinelli Telmo e consideraria uma ofensa ominosa à sua memória a passagem a pedra do Padrão dos Descobrimentos, mandada executar por Salazar mais de uma década depois da sua destruição por providencial tempestade… mas habituei-me a vê-lo no horizonte e dele já não guardo a acrimónia de meus pais, mesmo sabendo a ideologia que a sua estética encerra. Porque vivi como adulto a construção do CCB, continuo a considerar desajustada a sua implantação no terreno… mas com certeza nenhum neto meu será a seu tempo sensível a este argumento. Ou seja, a sedimentação do espaço urbano é a que é e normalmente somos mais capturados por ela do que verdadeiramente a controvertemos.

Porém, nada neste realismo dispensa o espírito crítico. O programa ideológico do Estado Novo contém, na construção urbanística que promoveu, nefastas consequências que nos devem fazer reflectir. Não aludo sequer aqui, como importaria fazer noutro contexto, à substituição do “ambiente de bairro” pelo “espírito do império”. Não falo tão-pouco da desqualificação que se seguiu durante décadas, especialmente na zona da frente ribeirinha – o que só por si indicaria a falência dos arranjos de 1940. Refiro-me às dimensões altamente desrespeitadoras do edificado monumental e em particular do Mosteiro dos Jerónimos. Reduzida a pessoa humana à sua pequenez, face a alinhamentos e terreiros, espaços rituais e majestáticos, o Mosteiro foi remetido para a condição de mero cenário operático, definitivamente situado na retaguarda, subjugado pelos espectros do Regime. Concluiu-se assim a descaracterização que tinha sido iniciada com Rambois e Cinatti, sem todavia nessa fase e pelo menos em projecto se ter completamente abandonado a natureza profunda do todo envolvente. Com efeito, manteve-se até tarde, na verdade até à 1ª República, a intenção de reconfigurar o que fosse possível (e quase tudo era) da antiga cerca conventual, sob a forma de amplos espaços ajardinados, alamedas e fontes, fazendo do Mosteiro centro do conjunto patrimonial e não mero tardoz do mesmo, como o Estado Novo veio a dar por consumado – por mera opção ideológica, insisto, já que quase toda a colina do Restelo estava ainda vacante.

Lembrando tudo isto faz-se história e respeita-se o passado. Omitindo-o, reduzimo-nos à mera condição de acólitos em celebração ímpia.

Arqueólogo

 

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