Bebé dos diabos

A usura do tempo e do espaço numa conjugalidade. Um apartamento em Nova Iorque, um casal com criança, a semente da discórdia.

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A primeira sequência tem a determinação do cinema clássico: timing da screwball comedy, sem tirar nem pôr, sobretudo sem cortar – (já) qualquer coisa de irreversível ali. Um par, Adam Driver e Alba Rohrwacher, conhece-se numa casa de banho de um restaurante chinês, onde ambos ficaram fechados. Qualquer coisa de irreversível, ali, e a memória dessa sequência inicial regressa ao espectador durante e no final do filme – lembram-se, a personagem de Alba estava sempre com o dedo no nariz, porque Adam evacuara? O anedótico anuncia o inferno patológico que se vai instalar no quotidiano de um (futuro) casal com criança, em Nova Iorque.

Sim, depois dessa casa de banho, passa-se para o casamento. E depois para a maternidade... É apenas a meia-hora inicial de Corações Inquietos (o título original, Hungry Hearts, é que inquieta; o português normaliza) mas Saverio Costanzo concentra nela as atenções e a habilidade, gerindo elipses e saltos por géneros que têm o efeito de uma cobrança: a usura do tempo e do espaço numa conjugalidade. Tão pouco tempo de filme e já o desgaste a pesar, toda uma vida, nas personagens de Adam Driver e Alba Rohrwacher, que, após o burlesco e a comédia romântica, vão ser comidos vivos pelo terror psicológico, género cinematográfico onde finalmente Corações Inquietos se amarra – fisicamente, os actores estão exangues, como que vampirizados, e é por isso, por esses sinais de exaustão (e porque tudo se passa num apartamento em Nova Iorque, e porque a familiaridada da cidade se vai tornando estranha, e porque Alba Rohrwacher tem coração de passive-agressive como Mia Farrow...) que Hungry Hearts se parece com uma versão de bolso, low cost, do Rosemary’s Baby (1968) de Polanski. Aqui é o bebé de Alba... que a mãe quer proteger contra as impurezas e os maus cheiros dos mundo.

É essa dinâmica de desgaste que afirma Hungry Hearts inicialmente. O que, depois, causa problemas ao filme, que a determinado momento se imobiliza num formato, apesar da ilusão de que há coisas a acontecer, apesar da precipitação final (na fronteira da involuntária caricatura, essa pressa de thriller e de monstros) que mostram que a habilidade de Costanzo é bem mais doméstica: procura reconhecimento e conforto no preciosismo dos sentimentos e na psicologia, uma redundância própria de muito cinema italiano actual – “actual” quer dizer: na ressaca do bravio e lírico que acabou algures nos 70s. Saverio Costanzo não é Polanski, é o realizador do rendilhado A Solidão dos Números Primos (2010).

 

 

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