Avignon: diz-me o que cantas, dir-te-ei como o danças

Um golpe desferido à traição, embalado pelo encanto exótico que é ver a ópera barroca com sonoridades africanas. Coup Fatal, de Alain Platel, abriu, finalmente, o 68.º Festival de Avignon

Fotogaleria
"Coup Fatal", de Alain Platel Chris van der Burgh
Fotogaleria
"Coup Fatal", de Alain Platel Chris van der Burgh

Esperávamos mais de Alain Platel. Assim, sem rodeios. Esperávamos que o coreógrafo belga pudesse emprestar uma distância ao maravilhamento natural que provocam os corpos vindos de longe, de um sítio que parece só existir, para quem só se preocupa em saber onde fica quando vê espectáculos, nas programações dos teatros e dos festivais. Um lugar que, afinal, só existe porque existem nomes como Alain Platel que querem romper estereótipos e criar, com eles, os de lá, ao seu lado, momentos de partilha e de encontro que vão para lá das palavras.

Coup Fatal, golpe fatal, título amargo e irónico, resistente e combatente, é nome de um concerto coreografado com músicos tradicionais de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, sob direcção musical de Rodriguez Vangama que abriu Avignon depois de ter passado pelo Wiener Festwochen, na Áustria, em Junho.

É uma festa, uma celebração de um prazer livre, o de dançar e cantar, onde as árias de ópera são interpretadas na imensa liberdade que a distância relativamente à forma e ao protocolo possa criar. Mas é também um exercício simplificado (não ousamos dizer simplista porque não se pode recuar perante a energia contagiante que emana do palco e a entrega devota que parte da plateia) que não se escusa a rodriguinhos coreográficos, como quando para cantar uma ária de Orfeu e Eurídice, o contratenor abandona a féerie do seu canto e se deixa levar, de olhos fechados e mão no ombro, pelo maestro que abandona o seu posto de comando militar para se tornar um resistente do povo. Ou, golpe fatalíssimo, quando a última ária é, precisamente, Lascia ch'io pianga, de Händel, para que a última palavra – liberdade – possa trespassar as paredes grossas do Lycée de Saint-Joseph e una todas as lutas, até a dos intermitentes.

coup fatal trailer from Jan Bosteels on Vimeo.

Sim, um concerto coreografado por Alain Platel deveria ser mais do que um exercício de estilo. É ver o que o próprio fez no Teatro Real, em Madrid, em 2012, com C(h)oeurs, a partir de árias de Wagner e Verdi, para perguntar o que aconteceu ao olhar de um homem que, disse-o ele em Last Stop Kinshasa, documentário de 2009 que passou no DocLisboa, não queria repetir, pela dança, erros de perspectiva passados.

Recuemos então. Em 2008 conheceu Serge Kakudji, contratenor contra tudo de 17 anos que vimos em Dinozord, de Faustin Linyekula (Alkantara 2008) e convidou este corpo imenso para voz de mel, para integrar Pitié! (passou pelo CCB em 2010) e, três anos depois, o encontro nas ruas da capital da República Democrática do Congo. Diz Platel em entrevista no programa: “A alegria de Serge e dos músicos mostram, no modo como se apropriam do repertório barroco, como se pode passar uma mensagem política mais forte que a crónica da pobreza ou da situação política da República Democrática do Congo. A alegria de viver, em condições por vezes horríveis, mostra-nos melhor quem são os congoleses do que as suas dificuldades. Queria transmitir essa energia numa realidade onde a amargura tem a dianteira num contexto [como o nosso] que é muito confortável.”

Mas é esta vontade de dizer, em vez de dar a ver, que tolhe os propósitos mais fundos de Coup Fatal e desfere, afinal, o misericordioso golpe num projecto que tem medo de ser livre. O que seria uma festa torna-se uma montra e o que era um encontro torna-se um confronto. O inebriamento provocado pela energia, as cores dos figurinos e a manipulação perversamente inteligente da música é controlada, por exemplo, pelo gestos simbólicos presentes na cenografia e figurinos, a moldura que tolhe a liberdade: as roupas bling-bling, os dourados das cortinas, as cadeiras azuis de plástico, maior bem pessoal que se pode ter nas ruas de Kinshasa. Ficamos sem saber se nos devemos sentir culpados por gostar de ver, de ouvir, de querer tocar, de desejar aqueles corpos, quando, no encore, cantam To be young, gifted and black (Nina Simone/Weldon Irvine, 1970). Ficamos, afinal, sem saber porque será nossa a culpa. E isso, num coreógrafo humanista como é Platel, soa a traição.

Falamos de luta e de resistência porque, este ano, em Avignon, não há espectáculo sem combate e antes de todos os espectáculos alguém lê um texto que é uma carta de resistência ao acordo de 22 de Março que opõe os profissionais do espectáculo ao governo. Os efeitos fizeram-se sentir logo na abertura, cancelada. Coup Fatal deveria ter aberto o festival na sexta-feira, 4 de Julho e, por isso, a mensagem que foi lida antes do espectáculo, com cada frase a começar com um sonoro “Não”, serviu de prólogo para Coup Fatal, mesmo que o exercício de comparação seja retórico, mas não enjeitado por uma plateia que se dividiu na sua defesa. As palmas finais, aliviadas, no fim de Coup Fatal, são também palmas de quem não se quer resignar, diziam-nos. Exercício de estilo performativo? Ninguém arrisca nada. Avignon continua em suspenso. Esta segunda-feira, 7 de Julho, o Off, manifestação paralela que reúne 1300 espectáculos de mais de seis mil profissionais, faz greve. Dia a dia o In, o Festival de Avignon, vota a sua continuação. No próximo dia 12 está marcada nova manifestação. E a ministra da Cultura francesa foi considerada persona non grata. Foi Alain Platel quem disse que vivíamos num contexto muito confortável?

Crítico de teatro e dança

Sugerir correcção
Comentar