Imperador Augusto é um camaleão com dois mil anos

O imperador romano foi o centro do maior congresso internacional de estudos clássicos organizados em Portugal. O primeiro de uma linhagem é, ainda hoje, para os classicistas da actualidade, difícil de definir.

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Cabeça de Augusto encontrada em Mértola (41-54 d.C.), que está no Museu Nacional de Arqueologia José Pessoa/Arquivo Direcção Geral do Património Cultural (DGPC)
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Taça com o mito de Perseu em prata e ouro (Séc. I- II d.C.) encontrada em Lameira Larga, Penamacor, exposta no Museu Nacional de Arqueologia José Pessoa/Arquivo Direcção Geral do Património Cultural (DGPC)
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Pedestal em mármore em honra de Augusto (Séc. I d.C.), encontrado em Lisboa e exposto no Museu Nacional de Arqueologia José Pessoa/Arquivo Direcção Geral do Património Cultural (DGPC)

Quando é a altura de Octaviano, ou melhor, o Imperador Augusto, se apresentar aos deuses, ele muda de cor como um camaleão.

Os deuses ouvem os discursos dos césares, um a um, para escolherem o melhor, e Augusto tem uma conversa calma, humilde, porque sabe que é isso que os deuses procuram. É o que escreve Juliano, o apóstata, imperador romano no século IV d. C, no diálogo que ficou conhecido como Os Césares.

Dois mil anos depois da sua morte, a figura de Augusto (63 a.C-14 d.C), o primeiro imperador romano, continua a ser lembrado como o chefe enigmático que se adaptava ao momento. O bimilenário é o ponto de partida para XIV A.D. Saeculum Augustum – The Age of Augustus organizado pelo Centro de Estudos Clássicos (CEC) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UL). Este congresso internacional é o maior na área dos estudos clássicos já organizado em Portugal: foram três dias, de terça a sexta-feira, e cerca de 120 oradores de 14 países diferentes.

Entre eles estiveram alguns dos grandes classicistas da actualidade como Andrew Wallace-Hadrill, Carlo Santini ou Paolo Fedeli, com conferências sobre as últimas interpretações da figura de Augusto, do seu império e do seu legado. Nenhum deles nas suas comunicações define claramente Augusto – afinal, o público do congresso é especializado e os papers são sobre pontos tão específicos como a produção cerâmica no norte da Hispânia ou os professores de retórica do jovem Octaviano. E quando se pergunta directamente a estes estudiosos quem era Augusto, não há muito mais luz sobre o assunto. “A sua imagem é a esfinge”, diz ao PÚBLICO Wallace-Hadrill, da Universidade de Cambridge; “é enigmático”, diz Nandini B. Pandey, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos; “Augusto é o Imperador”, diz Cristina Pimentel, professora da UL e organizadora do congresso para o definir como o mais importante de todos os que a ele se seguiram.

Este é o político que assume o poder depois da morte do seu pai adoptivo, Júlio César, e de quase um século e meio de guerras civis em Roma. Ele é o pacificador que se proclama príncipe – ou seja, o primeiro – e que assume o título militar de imperador, chamando a si muitas das funções que antes pertenciam a órgãos eleitos. É isto que o torna controverso ainda hoje. “Há quem ache que ele era um autocrata, um tirano como outro qualquer, mas mais esperto. Alguém que conseguiu ser um monarca fingindo que não o era”, diz Cristina Pimentel, que, pelo contrário, vê em Augusto um “político genial que se soube rodear de gente genial”, que tinha “um programa de unidade para Roma” e que queria iniciar uma linhagem.

Mantendo operacionais todos os órgãos da república anterior a si, Augusto esvaziou-os de poder. O que aos nossos olhos de cidadãos do século XXI parece um golpe ditatorial, para os historiadores foi sabedoria: “Foi pragmático à maneira romana. Ele adaptava-se à situação”, diz Wallace-Hadrill, que explica que esta sua concentração do poder numa pessoa e a rede de patrocínios que instituiu em todo o território foram formas de trazer a paz a Roma. "Se a elite" aqueles que votam e também aqueles acendem as lutas de cidadãos contra cidadãos "está do nosso lado, não precisamos de enviar forças armadas pelo território”.

Para o professor de Cambridge, que abriu o congresso com as suas conclusões sobre a transformação da cidadania durante o período de Augusto, o papel do exército na paz – isto é, das máquinas de guerra – é uma das lições do imperador: “Esta é uma receita para a paz. A profissionalização que fez do seu exército deu-lhe a paz, o que era o mais importante para ele. As nações europeias têm forças armadas profissionais e nunca estiveram tanto tempo em paz.”

Sendo polémico pelo modelo político que instaura, é unânime que este é um período de grande desenvolvimento artístico, diz Cristina Pimentel: "Todos os artistas dizem que gostavam de ter vivido naquela época”. A academia habituou-se a ver a grande produção artística do tempo de Augusto – que envolveu figuras como Virgílio, Horácio, Tito Lívio ou Propécio – como propaganda, mais um entre outros elementos na agenda política do imperador. Essa ideia tem vindo a mudar, diz ao PÚBLICO Nandini Pandey, que apresentou no segundo dia do colóquio uma comparação entre uma das passagens da Eneida e os edifícios da Roma de Augusto. A sua conclusão é que Virgílio leva os seus leitores a olharem o lado da história que é inconveniente ao regime: as mortes e tragédias necessárias aos feitos gloriosos. Se esta era a intenção do poeta, diz, não faz sentido pensar na Eneida como uma obra comissariada por Augusto para propaganda.

“O que é encomendar uma obra?”, pergunta Cristina Pimentel em jeito de pergunta retórica a propósito da Eneida. “Ele deu-lhe dinheiro? Não deu. Ele deu-lhe um cargo político? Não deu. Ele não tinha uma data limite para acabar. Levou dez anos a escrever a Eneida e não ficou concluída.”

Para a professora da UL, vale a pena ainda olhar para o exemplo do poeta Horácio: quando o imperador lhe ofereceu uma quinta afastada da capital não estava a comprar o seu apoio – estava simplesmente a “dar-lhe as condições para desenvolver a sua arte”, porque “sabia que ele era muito bom”. Estava a permitir que ele não tivesse que trabalhar para sobreviver – não era de uma classe social elevada – ­, que tivesse sossego e tempo. “Nunca os obrigou a nada”, sublinha.

Esta “criação de condições” e o consequente desenvolvimento das artes de forma independente – arquitectura, escultura, literatura –  é para Pandey o traço essencial do principado de Augusto. Mais uma vez aparece o exemplo da Eneida, a obra que mais de dois mil anos depois de ter sido escrita provoca algumas das maiores discussões neste congresso. “Assumiu-se que a obra era sobre Augusto porque fala muito da Roma de Augusto, mas fala muito mais do seu herói Eneias", argumenta, voltando às catástrofes que levaram à vitória de Roma.


Para Casper C. Jonge, da Universidade de Leiden, na Holanda, é também essencial o desenvolvimento das artes. A isso acrescenta o incentivo de Augusto aos professores estrangeiros que se queriam estabelecer em Roma e aí ensinar. O que a investigação de Jonge traz de novo é que a ideia de que professores de retórica e gramática gregos não eram um grupo à parte em Roma. Pelo contrário, conviviam com os romanos, trocavam opiniões sobre o seu trabalho e sentiam-se estimulados a desenvolver-se na literatura e na retórica.

Os gregos e a sua retórica são aliás uma importante influência para Augusto, como demonstrou Jonge na sua comunicação: a sua imagem pública, modesta e clara, está de acordo com os princípios gregos e é contrária à imagem que tiveram outros imperadores, como Tibério, sucessor de Augusto – este último acusava Tibério de usar “expressões pedantes”, conta o professor holandês.

“Queria apresentar-se como um homem comum – o que é apelativo para as audiências, contribui para a sua autoridade” disse Jonge ao PÚBLICO depois de na conferência ter lembrado que Marco António, que disputou o poder com Augusto depois da morte de Júlio César, queria ser admirado. "Augusto queria ser compreendido.”

Augusto, o imperador conservador que só usava roupas fiadas em casa pela filha e pela mulher, explicava-se no discurso político e apenas aí. “Todos aqueles monumentos apontam para ele, mas era difícil conhecê-lo. Ao contrário de Júlio César ou de Nero, não deixava ver muito do seu interior. Não sabemos muito do que pensava ou do que sentia”, explica Pandey. “Ele controlou a sua imagem pública não a exibindo muito. E o mistério é poderoso.”

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