As mortes de uma acompanhante de luxo

Não me entendam mal: vale a pena ver este espectáculo. Mas como seria se o casamento entre texto e encenação tivesse sido consumado?

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Mónica Garnel: o texto é um monólogo para uma actriz DR

A expectativa não é pequena, quando a um texto vencedor do concurso de peças inéditas da Sociedade Portuguesa de Autores e do Teatro Aberto se junta o actual director artístico do Teatro Experimental do Porto, Gonçalo Amorim, um dos encenadores mais atentos à dramaturgia contemporânea, que tem no currículo desde uma montagem premiada do seminal Foder e Ir às Compras, de Mark Ravenhill, até ao mais recente trabalho de Rui Pina Coelho, Nós Somos os Rolling Stones. Além do mais, Amorim trouxe na bagagem a cenógrafa e figurinista Catarina Barros, que tem abrilhantado as últimas produções do TEP com soluções belas e engenhosas.

O texto é um monólogo para uma actriz, que encarna a personagem de Luzia, enfermeira que acompanha casos terminais. "Sou uma espécie de puta dos mortos", pondera, já perto do final. Durante a maior parte do tempo, Luzia vai desfiando a memória dos homens que teve – bastantes – e que acompanhou na hora derradeira. Não fica claro para o espectador o estatuto que teve junto deles: se íntimo, se afectivo, se profissional, se tudo ao mesmo tempo. "Uma prostituta, ainda que se venda, faz serviço social", comenta, reflectindo sobre a utilidade pública da mais velha profissão do mundo.

Ela própria de luto, pela morte do gato de estimação, e certamente cansada da vida que levava, decidiu pôr termo aos seus dias. É nessa noite-nota-de-suicídio que a encontramos. Suicida-se logo depois de uma proposta para se tornar empreendedora do negócio de acompanhamento dos mortos, que parece ser a gota de água que faz transbordar o copo de mágoa.

Nem sempre é claro a quem se dirige o discurso, embora em teoria o destinatário final seja a própria Luzia, e nem sempre se entende bem qual a dificuldade que se coloca à personagem. Sobra mais narrativa que acção, verbal ou não-verbal, quer isto dizer. Mas a prosa é saborosa, os casos são cómicos e a figura revela-se simpática: é contra a mercantilização da morte e vê a humanidade no trabalho sexual.

O texto é feito na íntegra – o espírito do texto nem sempre. Há muita actividade física, incluindo saltos mortais e vários números de ginástica de alta competição, cuja pontuação sai fora do âmbito desta crítica, e cujo sentido extrapola o do texto original. Podia estar nesta como noutra peça. O cenário é uma divisão coberta de fita adesiva branca, com pequenas frestas para a luz e a vida exteriores, que mumifica a casa desta mulher, desde as inúmeras molduras e crucifixos, passando pelas portas e janelas vedadas, e culminando numa árvore de ramos tortuosos que se infiltrou por uma das paredes.

Este mesmo espaço transforma-se num túmulo ensanguentado quando, no final, o enterro do gato e o suicídio da mulher são graficamente decorados com motivos do culto aos mortos egípcio, mexicano, etc. É uma belíssima ilustração do tema, que cabe ao espectador descodificar, mas que soterra visualmente o vazio e desarrumação interior que a personagem tenta superar. O efeito gráfico da cena – como o movimento físico – substitui-se à alma dessa mulher.

Não me entendam mal: vale a pena ver este espectáculo. Música, luz, cenário, actuação, enfim, a direcção, como um todo, traça uma tangente ao texto original, e vive por si só. Mas como seria se o casamento entre texto e encenação tivesse sido consumado? 

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