Até onde se pode esticar sem que nada caia

O Condómino, a história de um homem que vive num apartamento como num sepulcro, mostra António Gregório como uma das vozes literárias mais arrojadas surgidas nos últimos tempos.

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António Gregório, uma das vozes mais singulares surgidas nos últimos tempos na literatura portuguesa RUI GAUDÊNCIO

A novela O Condómino (Língua Morta) – a história de um homem que por vontade própria se fecha em casa, e que através do óculo da porta (a que ele chama “olho mágico”) vai assistindo dia após dia aos movimentos pendulares dos vizinhos e de uns quantos visitantes que lhe passam diante do olhar espião – revelou, há uns meses, António Gregório (n. 1970) como uma das vozes mais singulares surgidas nos últimos tempos na literatura portuguesa.

O seu percurso também é singular: estreou-se na literatura com a colectânea de contos Uma História de Desamor Treze Vezes (Ambar, 2005), e dois anos depois publicou o livro de poesia American Scientist (Quasi edições). Frequentou o curso de Física na Universidade do Minho, e depois exerceu vários trabalhos “braçais”. Mas a escrita é uma paixão antiga, desde os tempos dos diários, “que não tinham interesse algum”.

Tantos anos passados desde o livro de estreia, quase uma década, quisemos saber das razões. E o autor conta que começou a escrever O Condómino quase de seguida, mas com interrupções bastante longas. Era difícil gerir o “processo de escrita” e o material narrativo, a informação vertida no texto, aquilo que fica escrito para trás e que semanas ou meses depois tem de ser retomado, pois já não era um conto o que estava a escrever (como acontecera com as histórias que escrevera até então). “Com um conto é mais fácil porque tens um melhor domínio de todo o material narrativo. Com um romance, ou mesmo com uma novela, esse trabalho é muito mais exigente. Tens de ver tudo de cima, tens de te lembrar do que ficou escrito umas dezenas de páginas atrás.”

Recentemente, António Gregório pensou que era tempo de terminar O Condómino, pois tinha a sensação de que se não conseguisse terminar o texto sentir-se-ia incapaz de começar qualquer outro projecto literário. Confessa que lhe deu trabalho apresentar uma história absurda mas que fosse credível, a de um “enterrado-vivo” que habita este mundo e como toda a gente tem de ter um “suporte de vida” para conseguir sobreviver e manter-se decente dentro de um apartamento num prédio. “Preocupei-me com a credibilidade, aquele suporte mecânico para que os carretos rodem uns nos outros sem parecer charlatanice: o condómino precisa de comer e tem assim quem lhe abasteça a despensa e trate das insignificâncias de suporte à vida, coisa pouca mas essencial para eu poder então começar a esticar a trela da credibilidade e namorar o absurdo. Como uma catarse.”

O olho mágico
Curiosa é a forma como a história lhe surgiu. Mudara-se na altura para Braga para estudar, e pela primeira vez foi viver para um apartamento, tendo até então morado sempre numa casa nos arredores de Leiria. O “olho-mágico” por onde o condómino espreita é o único material “autobiográfico” (digamos assim) da história ficcionada. “Vi-o em criança numa daquelas enciclopédias que explicavam o funcionamento de pequenas máquinas quotidianas. Entre motores eléctricos, motores a gasóleo e autoclismos, lá vinha o olho-mágico, que eu nunca tinha usado por não haver nas casas da minha rua. Não era óculo de porta que lá estava escrito, mas olho-mágico e, anos depois, estudante num apartamento de estudantes, sendo a minha memória pouco criteriosa na acumulação de tralha solta, era essa leitura que emergia sempre que era preciso ver quem tocava à campainha. O resto foi pegar em medos, tiques, pequenas inconfessáveis vergonhas, idiossincrasias ridículas donde gasto ou donde vejo os outros gastar, pôr tudo no ar ao mesmo tempo como num malabarismo de bolas e ir pouco a pouco esticando os limites da física e da credibilidade, a ver até onde podia ir sem que nada caísse.”

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Da história deste estranho misantropo, um verdadeiro “enterrado-vivo”, pouco ficamos a saber. Nem o nome nem a idade, nem como cumpre algumas tarefas mais essenciais à sobrevivência, tão pouco as razões que o levaram a cometer aquele acto absurdo, sabemos apenas que se mudou numa noite para aquele apartamento. António Gregório recusa qualquer outra leitura mais metafórica para além do que ali está escrito e da suposta extrema solidão da personagem. “Da minha parte, não há mais nada. Não sei o que aconteceu antes ao condómino, de onde veio e por que raio se fechou ali, sequer sei o que é dele depois de eu o ter deixado, debalde um epílogo à antiga, supostamente para fechar o destino da personagem.”

O espaço central da acção (e uma vez que não há digressões exteriores ao apartamento onde a personagem se move) está, obviamente, bastante confinado. Esta redução espacial que parece retirar hipóteses de profundidade à narrativa acaba por ter como contraponto uma atenção maior aos pormenores descritos. Também o esmerado e criativo trabalho de António Gregório com a linguagem vem, de alguma forma, servir de complemento; e não é apenas o ritmo frásico ou o cuidado trabalho de escolha das palavras, é também a segurança de uma escrita que por vezes subverte normas acompanhando o narrador e a narrativa na sua aproximação, em tropeções, ao limite do absurdo, apesar de esta ficção ter a preocupação de construir uma realidade coerente. Como se a importância do trabalho da linguagem se sobrepusesse à história contada. Para o autor parece não haver diferença entre uma coisa e outra: “Um bom livro, parece-me, é como uma boa canção: não há boa ou má letra para boa ou má música. Há a letra para aquela música, a música para aquela letra, ainda que cada coisa seja feita em tempos diferentes e sem a mínima ideia desse futuro casamento, ou seja, uma vez casadas, o casamento ou funciona ou não funciona. De modo que não sei separar a história do trabalho da linguagem, há o tal emaranhado de meadas sem ponta e depois a ponta por onde começo a puxar. Uma ponta que às vezes é só uma imagem, uma frase que às vezes é só um som, por mais que adiante faça esquemas e assinale a cronologia dos acontecimentos.”

Lemos O Condómino e é difícil encontrar lá influências evidentes. Mas António Gregório admite as de quatro autores portugueses: Camilo Castelo Branco “pela firmeza e nervosismo na mão”, Agustina Bessa-Luís “pela escrita felina", ou seja de "unhas afiadas e um gozo ronronante na frase”, Cardoso Pires, um “relojoeiro de tensões”, e sobretudo António Lobo Antunes. “Ele propôs-me não só uma maneira de pegar no emaranhado de meadas sem ponta que tinha dentro [da cabeça] e começar de uma vez o raio da manta, mas forneceu-me a ilusão da originalidade, e terá sido por essa altura que comecei a escrever os contos de Uma História de Desamor Treze Vezes." Agora, terminada a novela O Condómino, Gregório já deitou mãos ao começo de um romance.

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