Até ao fim do mundo

A América como história de perda e mágoa: Toni Morrison regressa à sua casa de sempre

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Toni Morrison permanece a consciência incómoda de uma nação perenemente assombrada pelos horrores da escravatura

“De quem é esta casa?” Assim começa o poema que funciona como epígrafe em Home, título original do romance de Toni Morrison, estranhamente traduzido como A Nossa Casa é Onde Está o Coração, em que a escritora norte-americana retoma os temas que fizeram dela — primeira mulher negra a ganhar o Nobel, primeira afro-americana a leccionar numa universidade da Ivy League — a consciência incómoda de uma nação perenemente assombrada pelos horrores da escravatura. Esse poema, na realidade uma canção que a própria autora escreveu duas décadas antes, é retomado aqui como síntese de toda uma história de perda e de mágoa. A casa tão estranha, em cuja fechadura serve milagrosamente uma chave perdida no tempo, é o espaço inalcançável e fantasmagórico que funciona como finalidade e propósito para Frank Money, um afro-americano perdido nos labirintos da América dos anos 50 do século XX.

Quando se inicia o livro, Frank é já um veterano da Guerra da Coreia, desmobilizado há meses, deambulando por Seattle, a embebedar-se pelas ruas e vielas, pelos quartos e apartamentos de uma cidade tão ou mais hostil do que a frente de batalha. Para trás ficaram os mortos, os seus amigos de infância, os companheiros de armas, o inimigo, os rostos estranhos, o sangue e o barulho das armas, a lama e o fedor. Encontramo-lo amarrado a uma cama, num hospital psiquiátrico, embrutecido pela morfina, perseguido por recordações e pelas imagens que o inquietam desde criança: uma vez, há muito tempo, ele e a irmã mais pequena, Ycidra, mais conhecida por Cee, que ele sempre protegeu, aventuraram-se longe de casa num terreno ameaçadoramente vedado onde, a coberto das ervas altas, no calor da Geórgia, presenciaram dois cavalos a lutar (“como homens”), levantados sobre as patas traseiras, os cascos faiscando à luz de um sol implacável. Mais tarde, no mesmo dia, observaram dois homens a carregarem e a enterrarem um corpo, de que só conseguirão entrever um “pé negro com a sua palma rosada e enlameada”, antes de a terra cobrir tudo. A lembrança desse crime furtivo — apenas mais um, numa terra sem lei onde os negros não são considerados “humanos” — continua a inquietá-lo. A sua desorientação aumenta quando recebe uma carta de uma tal Sarah que o convoca urgentemente: Cee, que fugiu de casa aos 14 anos com um aventureiro, está a morrer por razões não especificadas e só Frank poderá salvá-la. Descalço, atordoado, foge do hospital durante a noite, pelas ruas cobertas de neve, iniciando uma viagem interminável e mirabolante, de regresso a Lotus, Geórgia, decidido a resgatar a irmã.

Voltar a um lugar tão inóspito será um desejo, uma imposição ou apenas uma alucinação? Frank refaz, com relutância e sucessivos atrasos, o caminho de regresso ao espaço onde vivera sem o desejar e de onde partira com a intenção de não mais voltar. A esse respeito, o título original do livro é tristemente irónico, uma vez que, para os negros da América, a “casa”, o “lar”, é apenas uma miragem. Sem direitos sobre terras ou propriedades, espoliados, escorraçados, humilhados e tratados como algo descartável, cobaias de experiências — depois de escapar ao sedutor e violento Prince, Cee vai trabalhar para um médico “especialista” em eugenia —, estes “americanos” sem cidadania estão condenados a uma existência de proscritos.

A Nossa Casa é Onde Está o Coração

 é mais uma novela do que um romance, como se a autora quisesse “rever” os temas que a perseguem desde 

Sula

 (1973) e que têm a sua maior e mais perfeita expressão em 

Beloved

 (1987). A violência e a dor, a culpa e o remorso, bem como o anseio pela transcendência, são tratados habilmente por Morrison e suportados pelas suas bem conhecidas técnicas narrativas: fusão do passado e do presente, mistura de vozes (na primeira e na terceira pessoa), confissões, sonhos e pesadelos, numa bem orquestrada manipulação de géneros, tempos e acções. A odisseia de Frank — uma espécie de morto-vivo —, que nos remete para a viagem de Addie Bundren em 

Na Minha Morte

, de Faulkner, é uma forma de explorar o profundo dilema de personagens que se debatem entre a maldição de ficarem para trás no ambiente sufocante das suas origens e a ânsia de partirem para um vasto mundo cheio de promessas, mas também pleno de perigos.

John Updike foi um dos críticos que melhor decifraram o propósito da obra de Morrison, ao referir o “seu nobre e necessário projecto ficcional de expor as infâmias da escravatura e os tormentos por que têm passado os afro-americanos”. Neste livro, mais uma vez, a autora leva a cabo a sua missão. As mulheres, sempre elas, têm um papel fundamental, embora, aqui, Morrison tenha feito um esforço para deslocar a atenção do leitor para uma personagem central masculina. Mas, à medida que a acção avança, são elas que recuperam terreno, como se fosse impossível resistir-lhes. Os homens destroem, ameaçam, matam, jogam, escondem, torturam, escorraçam, enquanto as mulheres, por muito más que sejam — como Lenore, a avó malvada —, acabam sempre por cuidar, curar, mitigar, aliviar a dor em plena luz — como Cee expondo-se ao sol para cicatrizar a sua profunda ferida — e fornecer, com a sua tagarelice, a sua solidariedade, os seus conhecimentos, a sua experiência directa e a sua empatia, o único lugar estável e caloroso que, eventualmente, poderá dar pelo nome de “casa”. Porque, em Home, a “morada” não é onde está o coração; é, isso sim, o lugar onde, finalmente, Frank se redime e honra os mortos, cravando na terra um pedaço de madeira no qual escreve toscamente “Aqui ergue-se um Homem”.

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