As várias voltas da realidade

Uma aldeia, os animais, as estações do ano. E um rapaz que procura rapariga. Temos homem. Isto é, temos personagem de cinema. Volta à Terra, de João Pedro Plácido: as várias voltas da realidade quando estimulada pela ficção.

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Sem querer desvendar as regras do pacto estabelecido com as pessoas de Uz que conhece de anos e anos de regresso à terra para férias João Pedro Plácido aceita fazer o outing da sua metodologia de rodagem. DR
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Partir da realidade para criar uma ficção que é a realidade DR
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O filme é um retrato de grupo com Uz em fundo: meia centena de pessoas, os trabalhos do campo, as festas, as estações, os animais DR
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O simples passar das estações não fazia “avançar a narrativa” e “sem conflito o filme não funcionava”. João Pedro Plácido virou-se para Daniel em busca de solução DR
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Uma aldeia, os animais, as estações do ano DR

Eis, então, um "híbrido", produção urbano-rural: João Pedro Plácido, nascido em Picoas, Lisboa, 1979, mas educado pelos avós maternos, tocado pelos valores de Uz, Braga, como “a consciência da importância do outro”, “o comunitarismo”, “a resignação cristã” que faz aceitar as contrariedades... elenca sem ênfase, coroando tudo com naturalidade: “o equilíbrio das coisas”.

Eis Volta à Terra, uma primeira realização - ele, que se coloca ao serviço dos outros de forma eclética como director de fotografia, garante que será a única, porque lhe falta energia para suspender tudo e se envolver. O filme é um retrato de grupo com Uz em fundo: meia centena de pessoas, os trabalhos do campo, as festas, as estações, os animais (as aldeias têm esta forma arquetípica no cinema: uma estrada única que atravessa a povoação, animais a cruzarem o ecrã, a neve, lembram-se de As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino?)

Volta à Terra é um híbrido: nem é, afinal, retrato de grupo, porque o que se evidencia, em sucessivas visões, é a demanda pícara de uma personagem, Daniel. Que vai sendo exponenciada com os traços e as roupas da ficção – há-de vir a história do chapéu no final.

São as chamadas “ficções do real”, o híbrido é já o nosso mundo de espectadores. Mas talvez esteja aqui a apontar para um sentido qualquer esta (re)descoberta de um país para além da troika, como quem volta à terra. Lembram-se daquele plano, em Campo de Flamingos sem Flamingos (2013), de André Príncipe, com a TV a falar no ministro das Finanças e o filme a iniciar-se aí como gesto de dissidência e partir em direcção a outro olhar, fora da caixa do telejornal? Pois há um plano se não igual pelo menos a apontar para a mesma direcção, mas agora é o Presidente da República na TV, em Volta à Terra.

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João Pedro diz ter capacidade para “não sacralizar o material”, por mais querido que lhe seja, porque são anos e anos, como director de fotografia, a fazer “planos bonitos” que não cabem nas versões finais DR

“Sim, queria marcar o contraste entre um Portugal em crise e um lugar onde a crise não existe. É um lugar que tem a aparência de pobreza mas que é de uma enorme riqueza a nível humano”.

Daniel, por exemplo: figura exuberante, mas que parece estar em paz com o mundo com que pragueja, procura rapariga. Falou-se de As Quatro Voltas. João Pedro Plácido conhece, mas diz que é o tipo de filme que não queria fazer – para encurtar razões, a forma como Frammartino prescindiu de uma hierarquização figurativa, tratando o humano com a mesma importância que o mineral, sabotaria a eficácia e a abrangência de Volta à Terra, que deseja público mais vasto. Por isso o realizador também diz que Volta à Terra não quer ser “um Wang Bing” - o chinês que venceu a competição internacional do DocLisboa 2014, com Father and Sons, no ano em que João Pedro venceu a Competição Portuguesa. Nem quer ser “um [Raymond] Depardon”. “Por mais que goste desses realizadores, gosto mais de E a Vida Continua, do Kiarostami” - filme que viu aos 16 anos -, “desse registo de documentário e de ficção em que não há austeridade cinematográfica que impeça o espectador de aceder ao filme”.

Uma ficção que é a realidade
Temos homem, então: Daniel. Que não tem mulher. O filme foi-se focando nele na montagem. João Pedro diz ter capacidade para “não sacralizar o material”, por mais querido que lhe seja, porque são anos e anos, como director de fotografia, a fazer “planos bonitos” que não cabem nas versões finais – por exemplo, todo um lado do filme que seria muito Être et Avoir (a neblina, a neve e a escola, como no filme de Nicolas Philibert, de 2002) foi posto de lado para não colocar problemas de “fluidez”.

Temos personagem. “Daniel é assim, embora as ferramentas cinematográficas ao dispor permitam exponenciar essa personalidade, o que a torna personagem de cinema”, diz João Pedro. Que, sem querer desvendar as regras do pacto estabelecido com as pessoas de Uz que conhece de anos e anos de regresso à terra para férias (conta que os primeiros tempos de rodagem foram passados à espera que fosse interiorizada a regra de não se olhar para a câmara, de se ignorar a máquina de cinema), aceita fazer o outing da sua metodologia de rodagem.

Por exemplo, conta que a certa altura, verificando que a harmonia de Uz era contrária à possibilidade de conflito, o que criava “um problema real” porque o simples passar das estações não fazia “avançar a narrativa” e “sem conflito o filme não funcionava”, se virou para Daniel em busca de solução: “partir da realidade para criar uma ficção que é a realidade”. O problema de Daniel, real, era que não tinha rapariga. Tratou-se de impor essa realidade ao cinema. “Há aí uma rapariga que conheças, Daniel?”. Havia. E foram, ele e a co-argumentista Laurence Ferreira Barbosa, bater à porta dela, para a convocar para o filme.

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Daniel rodeado de animais, telemóvel na mão, chapéu como adereço, conquistador fora de tempo ou já fora de campo mas entregue à sua verdade DR

O que se passa entre eles, rapaz e rapariga, segundo o realizador, a forma, por exemplo, como o humor de Daniel salta e contagia a rapariga, é a reiteração, com câmara ali para apanhar o que acontecia, e mesmo com diálogos escritos, de uma história antiga que (lhes) acontece desde que se conheceram em pequenos - para saber se boy gets girl é preciso ver o filme. Este estímulo da ficção à realidade desagua num plano que vibra com qualquer coisa de paroxístico: Daniel rodeado de animais, telemóvel na mão, chapéu como adereço, conquistador fora de tempo ou já fora de campo mas entregue à sua verdade. O realizador que a princípio salientava que o chapéu já andava por outros planos do filme, concede depois que sim, que desde a escolha do local, da hora, da tarefa, do conteúdo do telefonema que Daniel faz (à rapariga), e das suas respostas, “tudo foi planeado, construído” para que fosse um momento forte. “Creio até que anteriormente nunca tinha filmado o Daniel de forma tão próxima, num plano tão fechado, que sem ser grande plano acaba por ter a força do mesmo”. Não tem a ver com falsidade. É o apogeu de uma verdade.

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