“As palavras são tudo o que temos”

Pode-se rir ainda que a gargalhada soe insana, diz mais ou menos assim o britânico Martin Amis numa conversa sobre o seu regresso ao Holocausto num romance escrito na perspectiva nazi. A Zona de Interesse conta a sátira e a dificuldade da linguagem perante o genocídio.

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Em A Zona de Interesse Amis reconstitui o quotidiano de um campo de concentração, não na perspectiva das vítimas, mas colocando-se no lado nazi Barry Lewis/ CORBIS

Os tópicos para esta conversa começaram em Dezembro de 2014. Martin Amis, 66 anos no dia 25 de Agosto, apresentava então o seu mais recente romance, A Zona de Interesse, em Nova Iorque e respondia a perguntas de um público fiel ao escritor inglês, o implacável crítico da sociedade britânica onde nasceu, cresceu e se afirmou como um dos mais influentes e cotados autores vivos de língua inglesa.

Nesse livro recentemente editado em Portugal, Amis revisita o tema do Holocausto depois de o ter feito em 1991, com Time’s Arrow, uma delirante narrativa sobre a existência de um médico alemão. Neste A Zona de Interesse (Quetzal) Amis reconstitui o quotidiano de um campo de concentração, não na perspectiva das vítimas, mas colocando-se no lado nazi. Estamos do lado do mal, confrontados com os nossos demónios mais escondidos. Os leitores queriam-no ouvir não apenas sobre as opções literárias que tomou, mas sobre o real, ou seja, até que ponto o escritor se poderia pronunciar acerca da ameaça do mal no presente. O terrorismo, as manifestações de xenofobia, as perseguições rácicas. “Se este livro traz essas inquietações fico feliz”, afirmou agora no início de uma entrevista a partir de Nova Iorque, onde vive desde 2012, quando se zangou com Londres. “Temos 30 minutos”, anunciou para começo de conversa onde acabou por se esquecer o tempo, sem nunca acelerar o ritmo pausado das frases, num sotaque inglês que a voz cava tantas vezes torna quase imperceptível. 

Em A Zona de Interesse volta ao tema do Holocausto vinte anos depois de Time’s Arrow. O tema não estava esgotado para si?
Sim, não estava. Era algo que continuou a perturbar-me ao longo destes vinte anos. E continuo bastante intrigado, sobretudo porque permanece sem resposta uma questão que pode parecer simples, mas que neste caso não é: porque é que aconteceu? A maior parte dos ciclos de horror que aconteceram ao longo da História parecem ter uma explicação, por mais absurda que nos soe. Mas não este.

Estamos perante um romance muito diferente desse livro de 1991. Aqui optou por reconstituir ficcionalmente o genocídio, no que se pode chamar um romance realista. Até que ponto isso afectou a sua experiência de escrita?
É verdade, quis escrever este livro de forma muito realista. O primeiro romance que escrevi sobre o Holocausto não era nada realista. Era um recuo no tempo, uma viagem até um mundo muito anterior [acompanhava a vida de um médico alemão numa espécie de delírio cronológico]. Desta vez quis estar muito mais próximo da realidade. E agora, em retrospectiva, penso que só me senti capaz de o fazer porque já depois desse primeiro livro ter saído, casei com uma mulher que é metade judia. É uma motivação de que me apercebi apenas depois de ter escrito este A Zona de Interesse. Ao longo da escrita tal não me ocorreu. Mas a família materna da minha mulher sofreu bastante com o Holocausto, ouvi muitas histórias, conheci pessoas. Quis voltar, mas nunca na perspectiva de uma vítima, não me sentia à altura desse sofrimento que me merece o maior respeito. Optei pelo outro lado e, ao fazê-lo, ao estar do lado de que cometeu atrocidades, senti-me muito mais livre para escrever sobre o tema.

Disse numa entrevista que tentar entender o Holocausto é um caminho para nos entendermos a nós mesmos. Quer explicar esta ideia?
Sim. Não é exactamente uma ideia minha, mas alguém disse que o entendimento do genocídio é central para a nossa auto-compreensão. Penso que há um considerável elemento de verdade nisso. Nem toda a gente concordará. E há até muita gente que nem pensa no assunto. Também houve quem dissesse que depois do Holocausto não se pode pensar em mais nada, o que pode ser um pensamento extremado. Acho, no entanto, que essa ideia de nos tentarmos entender a partir desse acontecimento singular pode ser um bom ponto de partida, uma boa ideia para prosseguir com uma reflexão.

Nos textos que tem escrito depois de ter publicado A Zona de Interesse e nas entrevistas que tem dado, tem sublinhado a dificuldade de encontrar uma linguagem adequada ao Holocausto. No seu romance, o sonderkommando [os prisioneiros judeus que os nazis seleccionavam para fazer o trabalho mais baixo num campo de concentração, estavam no fim da linha e a seguir eram exterminados] que elege como um dos protagonistas, diz a dada altura que as palavras não são suficientes. Pode dar exemplos onde essa sensação de insuficiência da linguagem é mais sentida?
Sim, quando se escreve sobre este assunto sentimos muitas vezes que é preciso mais do que palavras. Isso manifestou-se especialmente naquele momento da narrativa em que o sonderkommando, Szmul, está a tentar mostrar toda a sua indignação, lamento e raiva e todas as palavras na página me pareciam inadequadas perante a enormidade daquela emoção. Mas as palavras são tudo o que temos para expressar qualquer coisa, então é uma sorte poder voltar às palavras. Podemos pensar na música, explorar a sua potencialidade para transmitir algo mais violento, mas de facto as palavras são tudo o que temos.

Começa este livro com uma história de amor.
Sim.

Foi essa a primeira ideia, foi a partir daí que construiu o livro?
Foi. De facto a primeira ideia, a primeira imagem, ocupa a primeira página do romance. Acho que um romance depende sobretudo de uma imagem. Os escritores descrevem essa ideia ou esse impulso pioneiro de formas diversas. Mas há um ponto em comum: essa ideia ou essa imagem é uma coisa a partir da qual se pode escrever ficção. Mesmo sem saber se será breve ou mais longa. Sabe-se muito pouco quando se começa, mas é isso que dá coragem para começar. Escreve-se essa primeira página e pensa-se outra vez e então, de modo quase mágico, o romance torna-se vivo. Isto pode parecer um tremendo cliché, mas é assim. É a porta para entrarmos no nosso subconsciente. É misterioso. É muito mais misterioso para mim agora do que era há quarenta anos, quando comecei.

Está mais consciente desse mistério?
Sinto-o como um mistério muito mais profundo. Norman Mailer escreveu um livro sobre isso e chamou-lhe The Soopky Art [2003] onde dizia que escrever tinha algo de assustador. É de facto uma coisa meio assustadora, estranha, misteriosa que acontece. É isso. Todo o processo é mágico. Ou pelo menos apresenta-se-me dessa forma. Cada vez mais.

Como é que chegou às três personagens principais, dois oficiais nazis e um sonderkommando, as três vozes com que conta esta história?
Comecei por escrever umas quinze páginas, tinha um dos protagonistas, um oficial que tinha dúvidas mas continuava, e pensei que devia ter o comandante [do campo de concentração onde a acção decorre], ter o seu olhar sobre aquilo. Depois achei que devia incluir a voz de uma vítima e ninguém era mais vítima do que os membros do Sonderkommando, que tinham de tratar dos cadáveres, eliminá-los, envolvendo-se num processo de uma silenciosa e miserável cumplicidade que só confirmava ainda mais a sua condenação. Foram as pessoas com a existência mais degradante que jamais viveram. Talvez. A ideia de um sonderkommando pressuponha a do Furher, de um líder desse espectáculo de horror. Essas partes foram as mais difíceis de escrever, mas continuei e a lógica do romance manifestou-se.

Sabe, não li assim tanta ficção sobre o Holocausto mas tenho a impressão de que uma vez que um romancista começa a escrever sobre o tema não pode dar tréguas à disciplina do romance. Há coisas que se tornam incontroláveis e eu estava determinado a não deixar que isso acontecesse, que me perdesse, não perdesse o controlo. Escrevi tentado não ficar esmagado, tentando seguir o processo que sempre seguira nos livros anteriores. Que queria terminar aquele livro e para isso não permitir que o tema mandasse em mim.

E não o impediu de colocar na escrita deste livro uma das suas marcas, a sátira, ainda que dito assim tal possa parecer algo desajustado ao tema. Foi um equilíbrio complicado, manter um olhar satírico sobre o mundo e sobre aquele momento particular? Como foi essa gestão?
Sim, eu sou um escritor cómico, faço comédia na minha ficção. Cresci nessa tradição, formei-me nela e mantive-me nela quase toda a minha vida. Não acho que o assunto inspire humor e não me sinto muito confortável quando alguém diz que neste livro faço comédia. A comédia sugere um humor elevado, acutilante. O facto é que somos capazes de rir de todas as coisas. Gosto da palavra sátira, sobretudo aplicada aqui. É um humor mais frio e achei que aqui ele não era inapropriado.

Do seu romance vemos um lugar de permanente absurdo, de loucura…
Sim, se há uma característica que define o Holocausto é o absurdo. Do princípio ao fim. É por isso que ele não nos faz sentido, que nos escapa. Quando tentamos teorizar sobre a motivação de exterminar os judeus daquela maneira ocorrem-nos palavras como loucura, insanidade. Mas isso é pouco. Decidir pela Solução Final é outra coisa. Não há réstia de lucidez nessa decisão. É certamente algo próximo da loucura e muitos dos seus aspectos são os de uma farsa. Mas a gargalhada perante aquele horror, qualquer gargalhada, parece igualmente insana…

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ERICA BERGER/ CORBIS

Em Time’s Arrow explorou o tempo de uma forma diferente do que faz qui. Aqui ele sente-se nas conversas, nas introspecções. Há um sonderkommando que contabiliza minutos ou um dia ganhos à morte, e um comandante que tenta calcular o tempo para vencer a guerra.
Li muita literatura deixada por sobreviventes e é impressionante a questão do tempo. É fulcral e é difícil de entender o que terá sido, mas também é muito poética. O tempo era tremendamente condensado se se era uma vítima. Para os perpetradores, imagino que tenha sido um tempo muito diferente. Talvez para eles tudo tenha sido muito rápido. É uma questão muito interessante que não aprofundei muito no romance.

Escolheu estar na cabeça de oficiais nazis, de um modo de pensar que desafia muitos valores, preconceitos e apela a um lado que dificilmente mostrarmos: o lado do mal humano. Como foi esse exercício?
Essa questão é muito difícil. Estar no lugar do outro e o outro ser aquele e ter características de normalidade a par com um tipo de mal que parece exemplar, único. Ser aquela voz é tentar estar nesse lugar, o "e se" pouco confortável para podermos escrever sobre. A imaginação ajuda, a par com muita informação que temos. Alguns historiadores alemães dizem que a nação estava muito dividida, que talvez 40 por cento dos alemães odiassem os nazis. Cerca de 20 por cento colaboraram e 20 por cento adoravam os nazis e tudo o resto estava no meio dessas categorias de apoio. Se lermos a História e os testemunhos das pessoas que estiveram envolvidas nesses acontecimentos percebemos que deve ser ainda mais difícil pôr-se nesse papel se se for alemão. Depois da unificação da Alemanha, em 1871 , tínhamos um país pacificado e, como alguém disse mais tarde, uma nação de poetas e de humanistas, de filósofos. Era também o povo com o maior nível de instrução que o mundo conhecera até então, até 1933, quando Hitler chega a chanceler. Isso representa uma afronta a todas as nossas crenças na educação, na protecção da cultura como únicos meios de responder à bestialidade e à barbárie. Ali, no país mais culto do mundo aconteceu a mais barbárie que se conheceu. Como lidar com isso?

Sente que depois deste romance está mais perto de entender alguma coisa do que se passou?
(Pausa) Não tinha consciência do quanto irracional tudo aquilo foi, o quanto se baseou em ganho económico. Os nazis pensaram que seria tão financeiramente compensador, que conseguiriam extrair dinheiro suficiente dos judeus para pagar a guerra. Por exemplo, detalhes como o facto de muitos de os deportados do Oeste da Europa terem de pagar para chegar aos campos de concentração. Isto aconteceu com deportados de Corfu, na Grécia, sem que eles soubessem que estavam a pagar um bilhete sem volta. Outra coisa de que me apercebi foi de como era vulgar o pensamento que estava por detrás de tudo aquilo, uma ideologia sem substância. Estava tudo ao nível de informação tablóide. Não havia de facto uma ideologia capaz de sustentar nada. Era propaganda. Não era como o marxismo de Estaline. Não havia um guia de comportamento sustentado. O que mais me espanta talvez seja isso, a falta de uma sustentação ideológica, uma explicação.

Um dos aspectos que muitas vezes sublinha no livro é o conflito entre essa propaganda nazi e os valores cristãos em que a sociedade alemã se sustentava.
Sim, foi por isso que eles sempre viram a religião como um inimigo. Eles tentaram atrair para si a influência da Igreja. Rejeitavam esses valores mas tinha de se confrontar com eles.

Vemos muitas vezes o comandante afirmar a sua normalidade, dizer que era uma pessoa normal. Até que ponto autores como Hannah Arendt ou Primo Levi o influenciaram?
Tinha-os presentes, sobretudo Primo Levi. Mas também voltei a ler Martin Gilbert e os seus escritos sobre o Holocausto. Não pegava nessas coisas há anos e reparei que a maior parte dos sublinhados coincidiam. Acho que a ideia de um demónio nazi é uma forma poética que ajuda a construir um certo ambiente. A verdade é que a maior parte das pessoas envolvidas eram burocratas de nível médio a quem foi dada a terrível oportunidade de ascender e ser temível e eles aceitaram. Muitos especialistas dizem que a ideologia nazi é tão básica quanto o apelo: “esses de vós que consigam bater e roubar e matar por nenhuma razão pessoas que nunca vos fizeram mal juntem-se a nós”. Acho que há muita verdade nisso.

A literatura pode ajudar a ter uma ilusão de entender um pouco o que foi este genocídio?
A ficção, a poesia, a teologia e a filosofia têm um peso muito grande na historiografia. Mas acho que se pode comparar o seu trabalho ao dos peritos de acidentes aéreos. Não podemos prever acidentes e investigamos. Não podemos afirmar que daqui a um ano ou dois ou seis meses aquilo não se irá repetir. Ninguém pode dizer que um avião não voltará a cair. Pode-se talvez dizer que nenhum avião vai voltar a cair devido a este conjunto particular de razões, mas mesmo isso é arriscado. O facto é que muita gente vai tentar garantir que tal não volte a acontecer. É esse o objectivo do exercício. Se algo trágico acontece uma vez alguém tenta evitar que se repita. O que pode o romancista aqui? Tem aqui uma muito pequena parte de influência. Quase tudo nos escapa e surpreende.Tome-se um exemplo do que está acontecer no mundo actualmente com a loucura e horror ou insanidade no estado islâmico. A avalancha islâmica parte de impulsos semelhantes.

Leu o romance Submissão, de Michel Houellebecq [ficciona sobre a vitória da ideologia islâmica em França num futuro próximo]?
Não li esse livro… Nem creio que fosse gostar (risos).

Acredita que este assunto, o Holocausto, terminou para si depois deste livro?
Continuo a ler sobre o tema e acho que um dia vou gostar de escrever um terceiro romance sobre o Holocausto, apesar de nunca ir forçar o tema. Se algum dia a tal imagem que me levou a este voltar a surgir, certamente irei em frente. Não consigo imaginar-me a deixar de ficar fascinado pelo assunto. Não tenho previsões, não está nada planeado, mas continua um assunto não esgotado.

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