As muitas possibilidades do romance do diabo

A obra maior de Mikaíl Bulgákov conhece uma nova tradução em português. Depois de António Pescada, Nina e Filipe Guerra mostram outra possibilidade de ler O Mestre e Margarita. A diferença começa logo no título.

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Mikhaíl Bulgákov trabalhou durante mais de dez anos em O Mestre e Margarita, fez muitas versões, queimou uma, destruiu várias e deixou por publicar quando morreu, em 1940, com 49 anos

“O tradutor de prosa é servo, o tradutor de poesia é rival.”

A frase ecoa em Nina Guerra, tradutora, e ela repete-a para classificar o seu trabalho de aproximação à obra que traduz. “É sempre uma tentativa de estar o mais perto possível do que o autor quis dizer. Os tradutores são servos dos grandes escritores”, justifica antes de falar sobre a recente tradução de O Mestre e Margarita, o romance em que Mikhaíl Bulgákov trabalhou durante mais de dez anos, de que fez muitas versões, queimou uma, destruiu várias e que deixou por publicar quando morreu, em 1940, com apenas 49 anos.

A história da escrita e edição deste livro é quase tão complexa quanto a matéria de que trata. Tem o diabo como figura central e apresenta o homem em toda a sua plenitude, tão cobarde e fraco como capaz de se transcender. A mulher de Bulgákov, Elena Shilovskaia, terminou-o, respeitando as inúmeras notas que o marido lhe deixou enquanto a doença o consumia, mas demorou quase 30 anos até que o romance fosse publicado. Antes, teve que atravessar na gaveta todo o período estalinista que denunciava e que por isso o censurou. A primeira versão, publicada em fascículos na revista literária soviética Moskvá em 1966 e 67, saiu modificada pela censura. A versão integral, tal qual a fixou Elena, surgiu no mesmo ano de 1967, em França, pela YMCA-Press. Tornava-se um dos romances mais discutidos da literatura. Motivo? A complexidade e abrangência da obra e o facto de não existir o que o tradutor António Pescada chama de “versão canónica”. Bulgákov fez muitas versões até chegar à derradeira e irá sempre especular-se acerca de que livro teríamos se o seu autor pudesse ter continuado a tentar melhorá-lo. “Ele não conseguiu elaborar a última parte tanto como queria; essas páginas não passaram pelo mesmo processo que as anteriores. A mulher apontava as suas intenções, as emendas, mas notam-se algumas incoerências. Nada que comprometa a sua qualidade, no entanto. E isso é extraordinário”, refere Nina Guerra.

Traduzido em 180 línguas, considerado um clássico, um dos romances mais brilhantes da literatura russa, apresenta vários níveis de leitura, está cheio de metáforas, paralelismos, uma paródia de significados marcada por subterfúgios linguísticos, “um mistério”, como lhe chama Nina Guerra, “impossível de traduzir” para outra língua sem que muita coisa se perca. Um dos desafios mais estimulantes para perceber a tal complexidade, ou as muitas possibilidades de leitura que a obra oferece, é pegar nas duas traduções da obra em português disponíveis actualmente, as únicas a partir do russo. A que acaba de sair pela Presença, assinada por Nina e Filipe Guerra, e a de António Pescada para a Relógio d’Água, editada em 2007. As diferenças de abordagem, de leitura – sem que o essencial do livro se altere – começam logo pelo título. O Mestre e Magarita, na tradução do casal Guerra, e Margarita e o Mestre, segundo António Pescada.

“O romance em russo chama-se O Mestre e Margarita”, justifica Nina Guerra sobre a opção pelo seu título. “Escolhi o título em função do modo como soava em português e da importância das personagens no livro. Margarita é mais relevante e pareceu-me que Margarita e o Mestre seria mais adequado na nossa língua”, refere António Pescada. Ao longo do romance são várias e distintas as opções seguidas pelos textos em português. Na versão de Nina e Filipe Guerra o tom e a grafia dos nomes estão mais próximos do original, enquanto António Pescada optou por “contar o melhor possível a história de Bulgakóv em português”, explica numa frase que é, em simultâneo, uma síntese acerca do modo como encara a tradução. “Sigo o mais possível o original, procurando contar aquela história como se estivesse a escrever o texto original em português”, afirma o tradutor, salientado ainda a sua satisfação pelo facto dos leitores portugueses terem duas traduções de uma obra sempre a colocar desafios em que a lê e ainda mais em que a traduz.

Não haver o tal texto canónico faz do livro uma obra aberta a muitas discussões e interpretações. Em 2007, o mesmo ano em que António Pescada publicou a sua tradução revista, saia na Rússia um volume de mais de mil páginas com anotações e diversas versões de um livro que teve vários títulos até Bulgákov se decidir pelo último. O Mágico Negro, oO Pesunho do Engenheiro, O Grande Chanceler, Romance Fantástico, O Príncipe das Trevas são hipóteses que Bulgákov considerou e António Pescada lembra no prefácio à sua edição. Quando em 1938 escrevia à mulher dando conta de que tinha 327 páginas dactilografadas e cerca de 22 capítulos, o escritor já fixara o título definitivo. Faltava-lhe o que achava a sua tarefa maior: rever um livro que tinha como grande referência O Fausto, de Goethe, além de muitas lendas e narrativas ocidentais.

“Por um cálido fim de tarde primaveril, dois senhores apareceram no Bulevar Patriárchie Prudi.” É a primeira frase do romance segundo Nina e Filipe Guerra. “Ao pôr do sol de um dia de Primavera invulgarmente quente, apareceram no largo do Patriarca, em Moscovo, dois cidadãos”. Primeira frase do romance segundo António Pescada. E fica a primeira certeza, a de que citar bem Bulgákov em português requer cautelas. Há que referir a versão. Nenhuma está errada. Estará alguma correcta? “Nunca podemos estar ao nível de Bulgákov”, afirma Nina Guerra. “É sempre possível fazer uma nova tradução”, refere por sua vez António Pescada.

Enfim, o demónio
Estamos na Moscovo dos anos vinte do século passado, em vésperas de Páscoa. Um poeta de pouco talento e um chefe de redacção de uma revista literária encontram-se para falar de um trabalho. O editor encomendara um poema anti-religioso, uma releitura do Novo Testamento segundo a qual Jesus não passava de uma lenda. É nesse momento que surge uma figura que os dois entendem como a de um estrangeiro, baixa estatura, dentes de ouro e a coxear da perna direita, que vem acender a discussão. O homem que foge a apresentações, mas vai respondendo a perguntas cheias de sugestões e acaba por conceder ser um professor, especialista em magia negra, que assegura ter conhecido Jesus – Yeshua, na versão do casal Guerra ou Ieshua, conforme o apresenta António Pescada – e Pôncio Pilatos.

A acção passa então para outra Páscoa, dois mil anos antes, no período que antecede a crucificação, com Jesus a surgir ingénuo, nada consciente da sua santidade, figura secundária do enredo onde sobressai Pôncio Pilatos. Vamos sabendo da angústia do procurador da Judeia, do modo como se vai sentindo incomodado ao longo do julgamento. É a versão do diabo, que conhecemos pela primeira vez enquanto professor de magia negra e que atravessa toda a acção. No regresso a Moscovo e a outro tempo onde a sociedade continua a sacrificar os seus melhores elementos.

Os paralelismos são uma constante. A Páscoa na Judeia e a Páscoa em Moscovo, com as mesmas cobardias, vigarices traições, o alheamento escolhido para fugir à consciência. E a metáfora continua na segunda parte onde surge o mestre, artista perseguido como o “filósofo” Jesus, Yeshua ou Ieshua; o mestre é uma personagem sem outro nome, homem por quem Margarita se apaixona e está apostada em salvar nem que tenha de vender a alma ao Diabo -- aqui chamado Woland, um mágico --, resgatando-lhe fama e a obra em que ele vai deixando de acreditar mas pela qual se gastou.

Não faltam as comparações entre o fim de vida de Bulgákov que, contra a doença que o atacou queria terminar o livro, e a do mestre, que surge como derrotado na sua criação. Quanto a Margarita, é inspirada na terceira mulher de Bulgákov, Elena Shilovskaia. Seria ela a guardiã do seu romance, a que o haveria de o salvar, terminando-o e guardando-o, nem que nunca chegasse a ser publicado. O amor, mais trágico na vida do que na ficção, surge sempre salvífico, o única fórmula capaz de fazer com que o homem se transcenda.

Simplificar O Mestre e Margarita, ou Margarita e o Mestre, é impossível. “Saímos sempre derrotados”, sublinha Nina Guerra. “O tema dele é a vida e o homem nessa vida. É uma literatura muito crítica da sociedade”, refere numa análise onde ressalva a vontade de Bulgákov de se aproximar o mais possível da realidade. É isso que nunca podemos esquecer e que temos de introduzir na obra, limitando ao máximo as notas de rodapé, que preferia ver remetidas para o fim do livro em vez de surgirem a cada página, impondo-se à narrativa. A questão eterna: a cultura de partida muitas vezes não é entendível na cultura de chegada. Há rituais, nomes, opções estilísticas, uma poética que resultam em russo mas que em português têm de ser contextualizadas. Como fazer isto sem nos tornamos demasiado explicativo e sem derrapar do original é um grande desafio”, refere também António Pescada. Foi ele que assinou a primeira tradução deste romance a partir do original russo, em 1991, para a Contexto. Chamou-lhe logo Margarita e o Mestre. A única edição que existia até então em português era de 1972 e partia de uma edição francesa. Em 2007, reviu a sua tradução para a Relógio d’Água. No fim do livro, o leitor por avaliar as principais alterações e entender melhor o trabalho “sempre inacabado” do tradutor. “O mesmo tradutor nunca faria a mesma tradução”, nota. A tentação seria sempre fazer outra, e já teria mais “erros” para emendar. Exemplo? Na primeira página do livro há uma discrepância factual nos textos traduzidos por António Pescada e por Nina e Filipe Guerra. “… é de assinalar a primeira estranheza desta pavorosa tarde de Maio”, lê-se em O Mestre e Marguerita. “… é preciso assinalar a primeira coisa estranha dessa horrível noite de Maio”, está escrito em Margarita e o Mestre. A tarde de um é a noite no outro. “No russo, como no francês, não há duas palavras para tarde e noite”, explica António Pescada para se referir àquele fim de dia em que o poeta e o chefe de redacção se encontram com o demónio.

A proposta não passa por ir descobrindo diferenças nas duas traduções, mas antes tentar perceber as possibilidades de leitura de um livro a que a maior parte dos leitores portugueses não consegue chegar no original tendo de confiar no tradutor e, como Nina Guerra sublinha, sabendo que o que o tradutor lhe dá em qualquer tradução de uma grande obra é a sua leitura. “Somos antes de tudo leitores e passamos a nossa leitura para outra língua, compreendendo o espírito da obra e da cultura em que ela se insere para a cultura a que ela quer chegar”, refere, acrescentando: “Nas grandes obras literárias há um segredo, um mistério que é impossível de traduzir. Acho que qualquer obra de Pushkin [Alexander Pushkin, escritor russo, 1799-1837], por exemplo, é intraduzível, mas mesmo assim tentamos o melhor. Este livro de Bulgákov está também nessa categoria de intraduzível. Há fragmentos tão elaborados que é muito pouco provável que alguém os passe como deve ser”, continua Nina Guerra sobre este romance que queria traduzir para português há muito tempo. “Era um desafio”, conclui.

Arriscaram. E não gostam de ser chamados autores, gostam da sombra porque é esse o lugar do tradutor de prosa, “nunca tirar protagonismo ao autor”, salvaguardando que o tradutor tem direito de errar, mas só se partir do original, “o resto é aldrabice”, sublinha. “O problema do tradutor”, salienta agora António Pescada, “é que a ir por um caminho, sabendo que há muitos outros.”

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