As Mil e Uma Noites foram um acontecimento em Vila do Conde

Lotação esgotada e muitos aplausos na primeira projecção do filme de Miguel Gomes em abertura do Curtas.

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As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes DR
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“É a primeira vez que mostro As Mil e Uma Noites no meu país, e é um filme que tem uma relação muito estreita com o meu país”, diz Miguel Gomes no palco do Teatro Municipal de Vila do Conde, a meio da tarde de sábado, antes de chamar ao palco muita da equipa e dos actores que estão presentes na sala para ver O Inquieto, o primeiro dos três volumes da sua trilogia sobre o Portugal de hoje. “Quase ninguém aqui viu o filme. Se depois me quiserem insultar, estou à saída.”

Não ficou registado se Miguel Gomes foi insultado – pelo contrário; ouvimo-lo repetidamente a agradecer as palavras simpáticas que lhe iam sendo dirigidas no final das sessões. Mas, a julgar pelas gargalhadas que se iam ouvindo, pelos aplausos com que terminaram as três sessões de As Mil e Uma Noites, em tempo de abertura oficial do Curtas Vila do Conde 2015, terá havido pouca gente com vontade de insultar o realizador pelo meio de uma sala esgotadíssima. 

Esgotadíssima não só pela presença do público local e dos convidados do festival, mas também pela presença de mais de uma centena de convidados da produção do filme: actores e técnicos vindos de Lisboa para “descobrir” o filme na sua integralidade (Adriano Luz, Teresa Madruga, Gonçalo Waddington, Joana de Verona...), mas sobretudo as gentes do Norte no centro das narrativas de O Inquieto, convidadas para verem o que o “génio da lâmpada” Miguel Gomes fez das suas histórias. Como o “professor Atita”, impulsionador do "Banho dos Magníficos do Ano Novo na Praia da Barra", em Ílhavo; como um dos desempregados que conta a sua história perante a câmara, Aníbal Fabrica; como Tiago Manuel, responsável pelas ilustrações do site oficial que acompanhou a rodagem.

Alguns ficaram para a sessão da noite de sábado, onde foi mostrado o segundo episódio, O Desolado (com um pequeno contratempo de som que forçou ao reinício da sessão), mas já só mesmo equipa e actores ficaram para o terceiro, O Encantado, projectado na noite de domingo. A lotação esgotada de O Inquieto forçou à marcação de uma segunda sessão do primeiro volume da trilogia para o fim da tarde de domingo, para acomodar aqueles que não “couberam”, mas mesmo sem as filas reservadas para convidados O Desolado e O Encantado praticamente esgotaram o Teatro Municipal até ao topo.

A electricidade, aliás, transparecia logo à porta do edifício renovado do antigo Cine-Teatro Neiva, pouco antes do início da sessão de O Inquieto, no momento em que se cruzavam os pais e filhos com balões cor-de-rosa (a saírem da sessão também ela esgotada da Ovelha Choné que dera o pontapé à secção infantil Curtinhas) e o público que aguardava o sinal de entrada para as Mil e Uma Noites (ou que se acotovelava na fila para levantar os bilhetes reservados).

Um momento que de algum modo repetia, a uma escala menor, o que acontecera nas projecções apaixonadamente recebidas do filme na Quinzena dos Realizadores de Cannes: a ideia de um filme-acontecimento que transcendia a própria dimensão de um simples filme para se tornar noutra coisa, num retrato “à la minuta” de um país em dificuldades, ainda por cima num fim-de-semana onde a revolta grega contra a austeridade estava na cabeça de todos. A electricidade percorria a sala, culminando nos comentários de espectadores que se reviam no grande ecrã à medida que as histórias se encadeavam - “é agora, é agora”, ouviu-se alto e bom som, quando o cartão enunciando o início do relato do “Banho dos Magníficos” surgiu no grande écrã.

Havia também, como Miguel Gomes fez questão de dizer na sua introdução, razões pessoais, até sentimentais para este happening ter lugar no certame vilacondense. “A primeira vez que mostrei um filme foi há 16 anos em Vila do Conde. Passar este filme aqui é importante – é como voltar ao princípio.” Num ano em que o Curtas lança em DVD as curtas de Gomes, ver um cineasta que se arrisca no formato longo deste modo quase desmesurado sem perder a “ligação” à ideia de que uma história dura o tempo que for preciso para fazer sentido, independentemente de formatos, é algo de admirável. E os longos aplausos no final dos filmes vieram de algum modo dar razão à aposta de Gomes e do seu produtor, Luís Urbano (a quem o realizador agradeceu a “inconsciência” de embarcar na aventura), em começar no Curtas a viagem lusa de um filme que “tem esta coisa de ser dividido em três, como a Santíssima Trindade”.

A atmosfera do Teatro Municipal flutuou claramente ao sabor dos cambiantes emocionais das seis horas de filme, do humor escarninho de O Inquieto à devoção ornitológica de O Encantado, passando pela resignação sem esperança de O Desolado, como uma espécie de montanha-russa pela qual o realizador foi guiando os espectadores confiando neles para intuirem o que se conta. Era essa electricidade que se sentia nos corredores da sala sempre que a campainha chamava para um novo volume, como se também o público fosse o rei Shahryar que aguardava a nova história contada por Xerazade, com uma única certeza, enunciada por Miguel Gomes antes do início da projecção de O Desolado. “Se não gostaram [do filme anterior], há esperança: este é muito diferente do anterior. Se gostaram, cuidado: este é muito diferente do anterior.” No final, todos estavam contentes: produção, organização, público. As Mil e Uma Noites começam em Portugal agora. 

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